quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Denise Paraná - A História de Lula O Filho do Brasil



"A história de Lula o filho do Brasil", Denise Paraná, é baseado no belo trabalho realizado através de pesquisas biográficas em São Paulo e no sertão de Pernambuco, e na tese de doutorado em Ciências Humanas, entitulada "Da cultura da pobreza à cultura da transformação - A história de Luiz Inácio Lula da Silva e sua família". Belo trabalho de pesquisa, tão somente. Como livro que se propôs a ser contado em forma 'quase romanceada', poderia ter sido mais bem elaborado, considerando que a autora tinha a faca e o queijo na mão, isto é, riquíssimo material de pesquisa sobre a vida de Lula e sua família, que é relatada até o ano de 1980. Faltou profundidade se considerado a energia que Lula possui e por consequência, sua trajetória de vida. O livro relata a história de um brasileiro simples, como a maior parte do povo Brasileiro, onde vencer o dia-a-dia através do trabalho talvez fosse a grande vitória da trajetória de vida. Como a vivência deste brasileiro foi construída no compasso da história do país, é fato marcante a história deste grande homem, Lula, atual presidente de nosso país, que venceu as dificuldades que a vida apresentou não com esmorecimento. Lula bem soube vivenciar os momentos que a vida apresentou, avançar ou 'não avançar' como parte do caminhar. Saber ser paciente, uma vitória, pois nem sempre as surpresas do caminho são flores somente. Erguer-se diante da tristeza, sorrir para levar ânimo onde o fio de esperança transparente se faz, isto aprendeu com a força da origem simples, junto a natureza, na infância, no nordeste deste país. É uma história de vida linda, por certo. A narrativa da pesquisadora tem um tom acima do necessário quando fala da vida simples do povo, retratado na vida do Lula. Ser pobre não é sinônimo de ser infeliz, que fique aqui registrado. A beleza da vida está no exterior, refletido do interior. Não gostei do tom que se fez ao patriarca da família de Lula, ou seja, o pai de Lula. O problema do alcoolismo não é retratado com a ênfase e seriedade necessárias. Problema social num país em que o pobre é o bêbado problemático, inconveniente, muito longe das bebidas finas servidas em ambientes fechados. O pai de Lula foi um homem ausente, por certo, mas foi no valor do trabalho que ele tanto pregou aos filhos, embora não o soubesse como, que ficou marcada a trajetória do filho do Brasil, Lula; não tão somente captado através da presença amiga da mãe de Lula. Por sinal, uma mulher lindíssima, com um belo sorriso mostrando que a vida é alegre, independente de bens materiais, pois antes que tudo, o amor conduz a nobre patamares de vivência. Soube perdoar até a quem a magoara, por conhecer que somos todas vítimas sociais e reconhecer na mãe do filho de seu marido também um ser humano falho. O livro não perdoa este ponto, tratando, infelizmente, a doença ,por vezes, como um 'castigo' imputado as pessoas. Triste, pois que seríamos todos doentes? O que de certa forma não deixa de ser verdade, sendo a terra o hospital geral. O amor ao próximo, certamente, Lula aprendeu das lições de vida da mãe. Tom desnecessário enfatizado no livro se fez quanto ao ato de procriar. Na forma como se apresenta o livro parece tudo muito desprazeroso, com a mulher com o triste papel de apenas aceitar tudo, como se não fizesse parte de sua história, que por certo é difícil, sofrida, mas o que é a vida se não momentos de prazer, dor, felicidade. Por sinal, parir também é um ato muito interessante (eu tive 4 partos normais). A mulher do interior pode e é feliz na difícil vida que leva pois não pede muito, não gasta muitos recursos da natureza, o que também é um lado extremamente importante neste mundo de carências. Só para complementar esta questão de filho do Brasil, digo que não é feio não. O filho do Brasil pode ser lindíssimo. Pobre, batalhador e lindo. Falando em lindo, linda foto de Lula e um sobrinho, quando jovem. As crianças pobres do interior do país, apesar da vida difícil podem ser felizes, tanto ou quanto mais que aquelas criadas com todo conforto nas cidades, mas que desconhecem o contacto com a natureza que lhe proporciona olhar acima e adiante. O tom dado as crianças pode ser um alerta para a situação que o país apresenta para as questões do interior, entretanto, este foi um pouco exagerado. Outro ponto a ser reforçado é a presença da esposa de Lula, D. Marisa em sua trajetória política, que por certo foi além do que apresentado. Guerreira, batalhou junto, ajudou Lula a ser quem é e como toda mulher, acaba por ficar apagada em cena (não me refiro ao filme, ainda). Tem um tópico entitulado 'Mulheres e Política' que não ficou bem esclarecido. Não há em nenhum momento, no texto referente a este tópico um nome sequer de mulher. Seria exatamente esse o objetivo da autora, deixar esta pegadinha para o leitor, fica aqui a reflexão. Outra curiosidade (vi a foto no livro): a soma dos números da matrícula na prisão é o número 13. Ponto positivo para o livro por conta do relato quanto a questão dos registros de nascimento em cartório no Brasil que acaba por ocasionar inconsistências quando de preenchimento (nome, sobrenome). A título de exemplo, meu pai, por engano, quando do registro de nascimento foi omitido o 'Silva' no registro da certidão de nascimento, o que ocasionou menos uma família 'Silva' no Brasil (pelo menos registrada). Não é fácil para um simples trabalhador analisar este livro pois o mesmo entrecruza com a história de tantas vidas. Vidas que constroem este país com o suor das mãos e a certeza de que poderiam, podem e poderão muito e muito mais. Confesso que não acabei de ler o livro. Apenas li algumas partes e vi certamente as belas fotos familiares que o compõem.




A história de Lula: o filho do Brasil/Denise Paraná. - Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.

Macaé Minha Terra Querida / Antônio Alvarez Parada



Imagem digital: Gladstone Peixoto - Macaé - RJ - Brasil

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Flávio Moreira da Costa / Os Melhores Contos



Enquanto a boa prosa não inicia (ou seriam boas idéias), melhor buscar outros caminhos... são apenas 791+557+582 páginas a percorrer. Afinal de contas, quem conta um conto...







I - Os Melhores contos brasileiros de todos os tempos/organizador Flávio Moreira da Costa; apresentação de Fábio Lucas. - Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2009;

O difícil de toda seleção é a restrição. Reunir os melhores contistas em um único espaço não é tarefa fácil. Imaginem os ruídos pertinentes com tanta prosa. Sem contar os mais tímidos que acabam por naturalmente se excluir da boa conversa. Vou contar-te nos meus contos, Flávio Moreira da Costa. Não por uma questão de restrição de espaço físico, que por certo é grande nestes tempos modernos, mas pelo prazer de reunir celebridades como: Barbosa Rodrigues, Mário de Andrade; Lindolfo Gomes; Rodriguo M. F. de Andrade; Reginaldo Prandi; Francisco Inácio Peixoto; Álvares de Azevedo; Ribeiro Couto; Bernardo Guimarães; Graciliano Ramos; Casimiro de Abreu; Jorge Amado; França Jr., Érico Veríssimo; Machado de Assis; Rachel de Queiroz; Domingos Olympio; Dyonélio Machado; Inglês de Sousa; Telmo Vergara; Lúcio de Mendonça; Dias da Costa; Alberto de Oliveira; Aníbal Machado; José Veríssimo; João Alphonsus; Arthur Azevedo; Marques Rebelo; Raul Pompeia; Lúcio Cardoso; Aluísio Azevedo; Carlos Drummond de Andrade; Domício da Gama; Herberto Salles; Xavier Marques; Bernardo Élis; Júlia Lopes de Almeida; Moreira Campos, Afonso Arinos, Rubem Braga, Coelho Neto, Joel Silveira, João Simões Lopes Neto, José Cândido de Carvalho; Vicente de Carvalho; Murilo Rubião; Alcides Maya; Clarice Lispector; Darcy Azambuja;
Breno Accioly; Cyro Martins; Lygia Fagundes Telles; Magalhães de Azeredo; Dalton Trevisan; Lima Barreto; Autran Dourado; João do Rio; Guimarães Rosa; Monteiro Lobato; Rubem Fonseca; Godofredo Rangel; Moacyr Scliar, Adelino Magalhães; Victor Giudice; Antônio de Alcântara Machado; Sergio Faraco.



II - Os melhores contos da América Latina / organizador Flávio Moreira da Costa. - Rio de Janeiro: Editora Agir, 2008;


A história do conto é mais natural do que parece. Ganhou fama de primo importante da crônica e o coitado do conto só queria prosear. O conto já existia antes do conto (período Colonial - esta é uma prosa contada), depois o conto nasce e cresce, aparece e amadurece (Século XX) e resplandece (já era tempo! Séculos XX e XXI). Felizmente, o conto continua. Imagina, este trabalho todo tem mesmo é que ser preservado. Não precisa de muito espaço. Em caso de emergência, lógico que você não vai salvar toda a biblioteca (se um dia possuir uma). Mantenha a calma, pegue o livrinho, ou coloque embaixo do braço e... pronto! Você acaba de salvar a prosa de oitenta obras de ficção com toda a diversidade que se fez possível: Popol Vuh, Inca Garcilaso de la Vega, Gaspar de Villarroel, José Bernardo Couto, Juan Rodriguez Freyle, Ricardo Palma, Esteban Echeverría, Pedro José Morillas, José Maria Roa Bárcena, Juan Montalvo, Rubén Dario, Manuel Gutiérrez Nájera, Amado Nervo,Eduardo Acevedo Diaz, José López Portillo y Rojas, Federico Gana, Rafael Delgado, Darío Herrera, Roberto J. Payró, Manuel Díaz Rodriguez, Cayetano Colly y Toste, Affonso Hernández Catá, Machado de Assis, Eduardo Wilde, Baldomero Lillo, Inglês de Sousa, Artur Azevedo, César Vallejo, Lima Barreto, Tomás Carrasquilla, Clemente Palma, Ricardo Jaimes Freyre, Ricardo Guiraldes, Abraham Valdelomar, Leopoldo Lugones, Monteiro Lobato, Affonso Reyes, Lino Novás Calvo, Horacio Quiroga, Antônio de Alcântara Machado, Manuel Rojas, Felisberto Hernández, Mário de Andrade, José Revueltas, João Alphonsus, Maria Luisa Bombal, Aníbal Machado, Mario Benedetti, Murilo Rubião, Juan Rulfo, Jorge Luis Borges, Augusto Roa Bastos, Lygia Fagunde Telles, Adolfo Bioy Casares, Clarice Lispector, Julio Cortázar, Juan Carlos Onetti, Julio Ramón Ribeyro, Gabriel Garcia Márquez, Mário Arregui, Rosario Castellanos, Dalton Trevisan, José Donoso, Guilhermo Cabrera Infante, Rubem Fonseca, José Emílio Pacheco, João Ubaldo Ribeiro, Rodolfo Walsh, Sérgio Faraco, Ricardo Piglia, Ednodio Quintero, Cristina Peri Rossi, Roberto Bolano. Salva estará a América Latina!


III - Os melhores contos que a história escreveu / organizador Flávio Moreira da Costa (seleção, organização e notas), com a colaboração com Celina Portocarrero; traduções exclusivas de Adriana Lisboa, Celina Portocarrero, Léo Schlafman, Luís Carlos Cabral e Maria Luiza X. de A. Borges; traduções escolhidas de Domingos Zamagna (Bíblia), Boris Schnaiderman e Berenice Xavier (russo), Aleksandar Javonovic (tcheco), Marcelo Backes (alemão) e Flávio Moreira da Costa - Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2006;

"A História faz a ficção, a ficção completa a História"

Livro de Ester, Bíblia, Judéia - Oriente Médio
Helena de Tróia, Heródoto - Grécia Antiga
Uma noite de Cleópatra, Théophile Gautier - Egito Antigo
A perfeição, Eça de Queiroz - Grécia Antiga
O procurador da Judéia, Anatole France - Judéia - Roma Antiga
Alexandre, o Grande, karel Capek - Macedônia - Ásia
Komm, o Atrébate, Anatole France - Europa (Povo bárbaro)
Uma aventura de Carlos Magno, Conto popular - França
A cruzada das crianças, Marcel Schwob - França
Guilherme Tell, Conto popular - Suíça
O bispo negro, Alexandre Herculano - Portugal
Capitão Kid, Marcel Schwob - Inglaterra
Os túmulos de Saint-Denis, Alexandre Dumas - França
Dia 5 de outubro, Georg Heym - França
Uma missa em 1793, Honoré de Balzac - França
As empadinhas, Alphonse Daudet - França
Como o brigadeiro foi tentado pelo demônio, Arthur Conan Doyle - França
Uma página inédita da História, Guy de Maupassant - França
Tamango, Prosper Mérimée - França - África
Um posto avançado do progresso, Joseph Conrad - Inglaterra - África
Nove de janeiro, Máximo Gorki - Rússia
Linha e cor, Isaac Babel - Rússia
A origem dos reis incas do Peru, Inca Garcilaso de la Vega - Peru
O paladino encanecido, Nathaniel Hawthorne - Estados Unidos
Rip van Winkle, Washington Irving - Estados Unidos
O DemÔnio dos Andes, Ricardo Palma - Peru
Entre libertador e ditador, Ricardo Palma - Peru
A cabeça do Tiradentes, Bernardo Guimarães - Brasil
Duelo de farrapos, J. Simões Lopes Neto - Brasil
Voluntário, Inglês de Sousa - Brasil
A galeria do Diabo, Baldomero Lillo - Chile
O navio negreiro, Castro Alves - Brasil
Pai contra mãe, Machado de Assis - Brasil
Uma noite histórica, Raul Pompéia - Brasil
O poço, Augusto Céspedes - Bolívia
O holofote, Artur Azevedo - Brasil
A expedição Moreira César, Euclides da Cunha - Brasil
Essa mulher, Rodolfo Walsh - Argentina
O dia em que morreu Getúlio, Domingos Pellegrini - Brasil
1964: manobras de um soldado, Flávio Moreira da Costa - Brasil

(*) Acredito que em algum lugar do "Mundo de K", que concorre ao prêmio TOP BLOG 2010 - categoria CULTURA, encontra-se o caríssimo autor Julio Cortázar. Quando tiver um tempo, é só conferir!

(em construção)

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Canto ao homem do povo - Charlie Chaplin para Carlos Drummond de Andrade



"Era preciso que um poeta brasileiro,
não dos maiores, porém dos mais expostos à galhofa,
girando um pouco em tua atmosfera ou nela aspirando a viver
como na poética e essencial atmosfera dos sonhos lúcidos,

era preciso que esse pequeno cantor teimoso,
de ritmos elementares, vindo da cidadezinha do interior
onde nem sempre se usa gravata mas todos são extremamente polidos
e a opressão é detestada, se bem que o heroísmo se banhe em ironia,

era preciso que um antigo rapaz de vinte anos,
preso à tua pantomima por filamentos de ternura e riso dispersos no tempo,
viesse recompô-los e, homem maduro, te visitasse
para dizer-te algumas coisas, sobcolor de poema.

Para dizer-te como os brasileiros te amam
e que nisso, como em tudo mais, nossa gente se parece
com qualquer gente do mundo - inclusive os pequenos judeus
de bengalinha e chapéu-coco, sapatos compridos, olhos melancólicos,
vagabundos que o mundo repeliu, mas zombam e vivem
nos filmes, nas ruas tortas com tabuletas: Fábrica, Barbeiro, Polícia,
e vencem a fome, iludem a brutalidade, prolongam o amor
como um segredo dito no ouvido de um homem do povo caído na rua.

Bem sei que o discurso, acalanto burguês, não te envaidece,
e costumas dormir enquanto os veementes inauguram estátua,
e entre tantas palavras que como carros percorrem as ruas,
só as mais humildes, de xingamento ou beijo, te penetram.

Não é a saudação dos devotos nem dos partidários que te ofereço,
eles não existem, mas a de homens comuns, numa cidade comum,
nem faço muita questão da matéria de meu canto ora em torno de ti
como um ramo de flores absurdas mandado por via postal ao inventor dos jardins.

Falam por mim os que estavam sujos de tristeza e feroz desgosto de tudo,
que entraram no cinema com a aflição de ratos fugindo da vida,
são duas horas de anestesia, ouçamos um pouco de música,
visitemos no escuro as imagens - e te descobriram e salvaram-se.

Falam por mim os abandonados da justiça, os simples de coração,
os párias, os falidos, os mutilados, os deficientes, os recalcados,
os oprimidos, os solitários, os indecisos, os líricos, os cismarentos,
os irresponsáveis, os pueris, os cariciosos, os loucos e os patéticos.

E falam as flores que tanto amas quando pisadas,
falam os tocos de vela, que comes na extrema penúria, falam a mesa, os botões,
os instrumentos do ofício e as mil coisas aparentemente fechadas,
cada troço, cada objeto do sótão, quanto mais obscuros mais falam.


II

A noite banha tua roupa.
Mal a disfarças no colete mosqueado,
no gelado peitilho de baile,
de um impossível baile sem orquídeas.
És condenado ao negro. Tuas calças
confundem-se com a treva. Teus sapatos
inchados, no escuro do beco,
são cogumelos noturnos. A quase cartola,
sol negro, cobre tudo isto, sem raios.
Assim, noturno cidadão de uma república
enlutada, surges a nossos olhos
pessimistas, que te inspecionam e meditam:
Eis o tenebroso, o viúvo, o chegado muito tarde
a um mundo muito velho.

E a lua pousa
em teu rosto. Branco, de morte caiado,
que sepulcros evoca mas que hastes
submarinas e álgidas e espelhos
e lírios que o tirano decepou, e faces
amortalhadas em farinha. O bigode
negro cresce em ti como um aviso
e logo se interrompe. É negro, curto,
espesso. Ó rosto branco, de lunar matéria,
face cortada em lençol, risco na parede,
caderno de infância, apenas imagem
entretanto os olhos são profundos e a boca vem de longe,
sozinha, experiente, calada vem a boca
sorrir, aurora, para todos.

E já não sentimos a noite,
e a morte nos evita, e diminuímos
como se ao contato de tua bengala mágica voltássemos
ao país secreto onde dormem meninos.
Já não é o escritório de mil fichas,
nem a garagem, a universidade, o alarme,
é realmente a rua abolida, lojas repletas,
e vamos contigo arrebentar vidraças,
e vamos jogar o guarda no chão,
e na pessoa humana vamos redescobrir
aquele lugar - cuidado! - que atrai os pontapés: sentenças
de uma justiça não oficial.


III

Cheio de sugestões alimentícias, matas a fome
dos que não foram chamados à ceia celeste
ou industrial. Há ossos, há pudins
de gelatina e cereja e chocolate e nuvens
nas dobras de teu casaco. Então guardados
para uma criança ou um cão. Pois bem conheces

a importância da comida, o gosto da carne,
o cheiro da sopa, a maciez amarela da batata,
e sabes a arte sutil de transformar em macarrão
o humilde cordão de teus sapatos.
Mais uma vez jantaste: a vida é boa.
Cabe um cigarro: e o tiras
da lata de sardinhas.

Não há muitos jantares no mundo, já sabias,
e os mais belos frangos
são protegidos em pratos chineses por vidros espessos.
Há sempre o vidro, e não se quebra,
há o aço, o amianto, a lei,
há milícias inteiras protegendo o frango,
e há uma fome que vem do Canadá, um vento,
uma voz glacial, um sopro de inverno, uma folha
baila indecisa e pousa em teu ombro: mensagem pálida
que mal decifras. Entre o frango e a fome,
o cristal infrangível. Entre a mão e a fome,
os valos da lei, as léguas. Então te transformas
tu mesmo no grande frango assado que flutua
sobre todas as fomes, no ar; frango de ouro
e chama, comida geral
para o dia geral, que tarda.


IV

O próprio ano novo tarda. E com ele as amadas.
No festim solitário teus dons se aguçam.
És espiritual e dançarino e fluido,

mas ninguém virá aqui saber como amas
com fervor de diamante e delicadeza de alva,
como, por tua mão, a cabana se faz lua.
Mundo de neve e sal, de gramofones roucos
urrando longe o gozo de que não participas.
Mundo fechado, que aprisiona as amadas
e todo desejo, na noite, de comunicação.
Teu palácio se esvai, lambe-te o sono,
ninguém te quis, todos possuem,
tudo buscaste dar, não te tomaram.

Então caminhas no gelo e rondas o grito.
Mas não tens gula de festa, nem orgulho
nem ferida nem raiva nem malícia.
És o próprio ano-bom, que te deténs. A casa passa
correndo, os corpos voam,
os corpos saltam rápido, as amadas
te procuram na noite... e não te vêem,
tu pequeno,
tu simples, tu qualquer.

Ser tão sozinho em meio a tantos ombros,
andar aos mil num corpo só, franzino,
e ter braços enormes sobre as casas,
ter um pé em Guerrero e outro no Texas,
falar assim a chinês, a maranhense,
a russo, a negro: ser um só, de todos,
sem palavra, sem filtro,
sem opala:
há uma cidade em ti, que não sabemos.

Uma cega te ama. Os olhos abrem-se.
Não, não te ama. Um rico, em álcool,
é teu amigo e lúcido repele
tua riqueza. A confusão é nossa, que esquecemos
o que há de água, de sopro e de inocência
no fundo de cada um de nós, terrestres. Mas, ó mitos
que cultuamos, falsos: flores pardas,
anjos desleais, cofres redondos, arquejos
poéticos acadêmicos; convenções
do branco, azul e roxo; maquinismos,
telegramas em série, e fábricas e fábricas
e fábricas de lâmpadas, proibições, auroras.
Ficastes apenas um operário
comandado pela voz colérica do megafone.
És parafuso, gesto, esgar.
Recolho teus pedaços: ainda vibram,
lagarto mutilado.

Colo teus pedaços. Unidade
estranha é a tua, em mundo assim pulverizado.
E nós, que a cada passo nos cobrimos
e nos despimos e nos mascaramos,
mal retemos em ti o mesmo homem,
aprendiz
bombeiro
caixeiro
doceiro
emigrante
forçado
maquinista
noivo
patinador
soldado
músico
peregrino
artista de circo
marquês
marinheiro
carregador de piano
apenas semrpe entretanto tu mesmo,
o que não está de acordo e é meigo,
o incapaz de propriedade, o pé
errante, a estrada
fugindo, o amigo
que desejaríamos reter
na chuva, no espelho, na memória
e todavia perdemos.


VI

Já não penso em ti. Penso no ofício
a que te entregas. Estranho relojoeiro,
cheiras a peça desmontada: as molas unem-se,
o tempo anda. És vidraceiro.
Varres a rua. Não importa
que o desejo de partir te roa; e a esquina
faça de ti outro homem; e a lógica
te afaste de seus frios privilégios.

Há o trabalho em ti, mas caprichoso,
mas benigno,
e dele surgem artes não burguesas,
produtos de ar e lágrimas, indumentos
que nos dão asa ou pétalas, e trens
e navios sem aço, onde os amigos
fazendo roda viajam pelo tempo,
livros se animam, quadros se conversam,
e tudo libertado se resolve
numa efusão de amor sem paga, e riso, e sol.


O ofício, é o ofício
que assim te põe no meio de nós todos,
vagabundo entre dois horários; mão sabida
no bater, no cortar, no fiar, no rebocar,
o pé insiste em levar-te pelo mundo,
a mão pega a ferramenta: é uma navalha,
e ao compasso de Brahms fazes a barba
neste salão desmemoriado no centro do mundo oprimido
onde ao fim de tanto silêncio e oco te recobramos.

Foi bom que te calasses.
Meditavas na sobra das chaves,
das correntes, das roupas riscadas, das cercas de arame,
juntavas palavras duras, pedras, cimento, bombas, invectivas,
anotavas com lápis secreto a morte de mil, a boca sangrenta
de mil, os braços cruzados de mil.
E nada dizias. E um bolo, um engulho
formando-se. E as palavras subindo.
ó palavras desmoralizadas, entretanto salvas, ditas de novo.

Poder da voz humana inventando novos vocábulos e dando sopro aos exaustos.
Dignidade da boca, aberta em ira justa e amor profundo,
crispação do ser humano, árvore irritada, contra a miséria e a fúria dos ditadores,
ó Carlito, meu e nosso amigo, teus sapatos e teu bigode caminham numa estrada de pó e esperança."


(ANDRADE, Carlos Drummond de, pág. 140-149)

Andrade, Carlos Drummond de, 1902-1987 - Antologia poética (organizada pelo autor) / Carlos Drummond de Andrade: prefácio, Marco Lucchesi. - 63a. ed. - Rio de Janeiro:Record, 2009.

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sábado, 9 de janeiro de 2010

Carlos Drummond de Andrade / Passagem da noite



"É noite. Sinto que é noite
não porque a sombra descesse
(bem me importa a face negra)
mas porque dentro de mim,
no fundo de mim, o grito
se calou, fez-se desânimo.
Sinto que nós somos noite,
que palpitamos no escuro
e em noite nos dissolvemos.
Sinto que é noite no vento,
noite nas águas, na pedra.
E que adianta uma lâmpada?
E que adianta uma voz?
É noite no submarino.
É noite na roça grande.
É noite, não é morte, é noite
de sono espesso e sem praia.
Não é dor, nem paz, é noite,
é perfeitamente a noite.

Mas salve, olhar de alegria!
E salve, dia que surge!
Os corpos saltam do sono,
o mundo se recompõe.
Que gozo na bicicleta!
Existir: seja como for.
A fraterna entrega do pão.
Amar: mesmo nas canções.
De novo andar: as distâncias,
as cores, posse das ruas.
Tudo que à noite perdemos
se nos confia outra vez.
Obrigado, coisas fiéis!
Saber que ainda há florestas,
sinos, palavras;
que a terra prossegue seu giro, e o tempo
não murchou, não nos diluímos.
Chupar o gosto do dia!
Clara manhã, obrigado,
o essencial é viver!"


(ANDRADE, Carlos Drummond de, pág. 48)

Andrade, Carlos Drummond de, 1902-1987 - Antologia poética (organizada pelo autor) / Carlos Drummond de Andrade: prefácio, Marco Lucchesi. - 63a. ed. - Rio de Janeiro:Record, 2009.

Imagem digital reeditada: Lígia Guedes - RJ - Brasil

Carlos Drummond de Andrade/Antologia Poética


"Os Ombros Suportam o Mundo

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação."


(ANDRADE, Carlos Drummond de, pág. 182)

Andrade, Carlos Drummond de, 1902-1987 - Antologia poética (organizada pelo autor) / Carlos Drummond de Andrade: prefácio, Marco Lucchesi. - 63a. ed. - Rio de Janeiro:Record, 2009.
Imagem digital reeditada: Lígia Guedes

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Elvis/Mito e Realidade



Tem livros que nunca serão terminados, como um sonho sem possibilidade de retorno ao ponto interrompido.

Arte-imagem reeditada (o livro original é azul claro/prata): Lígia Guedes
Elvis - Mito e Realidade, Maurício Camargo Brito (macbrito@bol.com.br), American Graffiti, 2a. edição - 1992

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Clarice Lispector/Entre-vistas



Ler um livro de entrevistas a princípio pode parecer adentrar através da 'palavra expressa' na intimidade do outro. No livro "Clarice Lispector - Entrevistas", difícil vislumbrar onde termina a rotina profissional da entrevistadora na arte de pesquisadora em conquistar o entrevistado com êxito para superar as expectativas do trabalho proposto e onde começa um grande diálogo. Clarice bem elabora todas as perguntas de maneira que muitas envolvem seu trabalho literário, fruto da curiosidade da alma humana, do conhecer através do outro a si própria, como ser humano comum, entretanto, com um olhar essencial à realidade do outro que se revela sempre especial.

É um livro para leitura vagarosa, onde cada entrevistado tem a oportunidade de saborear a boa prosa de Clarice quando formula perguntas, abrangentes como a vida, como quem deseja saber pelo outro o essencial que a vida propõe seja em literatura, música, artes cênicas, artes plásticas ou esportes. Como o ser humano é um pouco de tudo, melhor abrir o livro aleatoreamente e vislumbrar cada palavra conquistada por Clarice Lispector nos caros entrevistados, sejam eles Lygia Fagundes Telles, Rubem Braga, Tom Jobim, Pablo Neruda, Elis Regina, Fernando Sabino, Ferreira Gullar, Oscar Niemeyer ou Isaac Karabtchevsk, entre outros. Lógico que tudo acaba em um grande bate-papo, com a profundidade que somente Clarice pode proporcionar. Imaginar Tom e Clarice argumentando se a literatura e a música acabariam algum dia e em que tempo ocorreria ... felizmente concluíram que nunca acabariam (a fórmula dessa sabedoria, só os grandes podem calcular). "Só a criação satisfaz" responde em bom tom.

"Qual a coisa mais importante do mundo?";
"Qual a coisa mais importante para a pessoa como indivíduo";
"O que é o amor?";

pergunta Clarice...

"O amor";
"Saber situar-se neste mundo de alegrias e tristezas em que vivemos, certos de que não estamos sozinhos, ...";
"Sentir a fragilidade das coisas e a pouca importância de tudo que realizamos.";
"Dar ao amor o sentido universal que merece.";

foram respostas... só lendo!

Falando em leitura, não há como não pensar em releitura e pensar em releitura é pensar em Rubem Braga que curiosamente relatou pretender realizar uma seleção de todos os livros num só volume por estar em situação de 'esgotamento'. Não pretendia reeditar, nem reler seus livros, por achar a releitura um processo um tanto 'chato'... Não sei se conseguiu (reeditar o livro). Clarice Lispector concordou com ele, disse evitar ao máximo ter que reler seus trabalhos e fica mesmo espantada com pessoas que fazem releitura... Imagina! Bom, naquela época não existia a rede, é isto!

Hum... boa releitura!

Lispector, Clarice, 1920-1977 - Entrevistas, [organização de Claire Williams; preparação de originais e notas bibliográficas de Teresa Montero]. - Rio de Janeiro: Rocco, 2007.
Foto digital: Lígia Guedes

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