quarta-feira, 30 de novembro de 2011

A riqueza do mundo - Lya Luft



O que não é banal

O lixo na praia
a mulher parindo na calçada,
as multidões enlouquecidas,
as ilhas dos amantes.
Por um instante
a gente desliga os aparelhos
e vive.

Na luz que se filtra na mata,
poeirinhas, polens, saliva de fada
que ri à toa,
ou caspa de duende armando suas artes.
A ventania chega atropelando tudo:
recolhem-se crianças e coisas
e se olha a tempestade atrás da janela.

Logo ali o grande mundo mói a vida
com suas engrenagens cruéis:
mas aquele momento, naquela redoma
de vidro simples na chuva cotidiana,
ali é o castelo da Bela Adormecida
ou a casa dos sete anões.

(Nada é banal.
A gente é que esquece.)


"escrevo sobre o que nao sei direito", "escrevo para entender melhor e para dividir meus assombramentos com meu leitor" costuma dizer a autora do livro A riqueza do mundo, Lya Luft.

A riqueza do mundo, de Lya Luft é um livro áspero e poético, sempre questionador. Uma coletânea de ensaios breves, crônicas, artigos, não acadêmicos onde são abordados temas como o drama existencial humano, perplexidades, família, autoridade, guerras, miséria, política, entre outros. Como é vista a riqueza do mundo, seja natural, intelectual ou artísitca, afetiva ou econômica é tema indiscutível do livro.

Lya Luft é formada em Letras anglo-germânicas e com mestrados em Literatura Brasileira e Linguística Aplicada, foi educadora, atua como tradutora de alemão e inglês desde os 20 anos e já verteu para o português obras de autores consagrados como Virginia Woolf (ver aqui postagem de Entre os Atos), Gunter Grass, Thomas Mann e Doris Lessing, além de ter recebido o prêmio União Latina de melhor tradução técnica e científica em 2001 para Lete: Arte e crítica do esquecimento, de Harald Weinrich. É autora de uma infinidade de livros: As pareiras (1980), A asa esquerda do anjo (1981), Reunião de família (1982), Mulher no palco (1984), O quarto fechado (1984), Exílio (1987), O lado fatal (1988), A sentinela (1994), O rio do meio (1996 - Prêmio da Associação Paulista de Críticos de Artes), Secreta irada (1997), O ponto cego (1999), Histórias do tempo (2000), Mar de dentro (2002), Perdas - Ganhos (2003), Pensar é transgredir (2004), Histórias de Bruxa Boa (2004), A volta da Bruxa Boa (2007), literatura infantil, Para não dizer adeus (2006), poesia, Em outras palavras (2006, crônicas, O silêncio dos amantes (2008), contos, Criança Pensa (2009), literatura infantil, parceria com Eduardo Luft, Múltipla Escolha (2010), Ensaios.

"E quando tudo me aborrecer de
verdade, quando eu ficar cansada
de minhas neuroses e manias,
quando as pessoas estiverem
demais distraídas, a paisagem
perder a graça, a mediocridade
instalar seu reinado e anunciarem
o coroamento da burrice - vou
espiar o letreiro que fala de uma
riqueza disponível para qualquer
um, e que botei como descanso de
tela no meu eternamente ligado
computador:
Escute a canção da vida."

Lyft, Lya,1938 - A riqueza do mundo - Rio de Janeiro: Record, 2011.

domingo, 27 de novembro de 2011

Alberto Moravia - Contos romanos


Contos romanos - Alberto Moravia
Berlendis & Vertecchia, 2002

O Palhaço

Naquele inverno, só para fazer alguma coisa, comecei a vagar pelos restaurantes tocando violão enquanto meu companheiro cantava. O companheiro chamava-se Milone apelidado "o professor" porque ensinara ginástica sueca. Tratava-se de um homenzarrão de mais ou menos cinquenta anos, não exatamente gordo, mas quadrado, com um rosto denso e ameaçador e um corpaço maciço que fazia com que as cadeiras rangessem quando se sentava. Eu tocava o violão do meu jeito, isto é, quase sem me mexer, com os olhos baixos, porque sou um artista e não um bufão; quem bancava o palhaço, ao contrário, era Milone. Começava meio sem querer, em pé, ereto, apoioado a uma parede, o chapeuzinho em cima dos olhos, os polegares sob a axila, a barriga fora das calças, o cinto embaixo da barriga: parecia um bêbado cantando ao luar. Depois, pouco a pouco, esquentava e, mesmo sem cantar de verdade, porque não tinha voz nem ouvido, acabava dando um espetáculo de si mesmo, ou melhor, como eu já disse, bancava o palhaço. Sua especialidade eram cançõezinhas sentimentais, as masi famosas, as quem normalmente comovem e enternecem, porém na sua boca aquelas canções nao comoviam, mas fazim rir, proque ele sabia torná-las ridículas, de um jeito todo seu, desagradável e triste. Eu não sei o que tinha aquele homem; se na juventude alguma mulher tinha aprontado com ele; ou talvez ele tivesse nascido daquele jeito, com um caráter que se comprazia em tornar ridículas as coisas boas e bonitas; o fato é que ele não era só um ator cômico, não, ele colocava não sei que raiva no que fazia e era necessária toda a obtusidade das pessoas enquanto comem para não perceberem que ele não era ridículo, mas dino de penas. Superava a si mesmo sobretudo quando se tratava de imitar os movimentos, as caretas e as afetações femininas. O que faz uma mulher, sorri maliciosamente? E ele, por baixo da aba do chapéu, esboçava um riso de escárnio, vulgar, de prostituta. Requebrava, como se diz, um pouco os quadris? E ele começava a dança do ventre, jogando para o lado as nádegas quadradas e maciças como um pacote. Tinha uma voz suave? E ele, apertando a boca, emitia uma voz de flauta, melosa, quase estomacal. Nunca tinha medida, ultrapassava sempre o limite, tornava-se obsceno, repugnante. De tal maneira, que eu sempre me envergonhava, porque uma coisa é acompanhar um cantor ao violão, outra coisa é servir de muleta a um palhaço. Eu me lembrava de ter tocado não muito tempo atrás as mesmas músicas cantadas seriamente por um excelente artista; e sentia pena de vê-las reduzidas àquilo, irreconhecíveis e indecnetes. Falei com ele numa ocasião em que estávamos batendo perna de rua em rua, de um restaurante a outro. "Mas o que as mulheres fizeram para você?" Normalmente, depois que bancava o palhaço, ficava distraído e sombrio, sabe-se lá com que pensamentos rodando pela sua cabeça. "As mulheres não me fizeram nada." "Eu estou dizendo isso", expliquei, "porque voê tira sarro delas com gosto." Desta vez ele nao disse nada e a conversa acabou por aí.
Teria abandonado Milone se nao tivesse mais interesse por ele; porque, ainda que possa parecer incrível, ele conseguia mais dinheiro com as suas vulgaridades do que muitos excelentes músicos ambulantes com as suas belas canções. Vagávamos principalmente por aqueles restaurantes não propriamente de luxo, quase cantinas, caseiros, mas caros, onde as pessoas vão para encher a pança e se divertir. logo que entrávamos, eu, muito de leve, dedilhava o violão, das mesas abarrotadas ouvia-se um só grito: "olha o professor... o professor está aí... venha até aqui, professor". Carrancudo, debochado, desvairado, puxa-saco, Milone se apresentava, dizendo: "Podem pedir", e aquele "podem pedir" já era tão ridículo ao seu modo, que todos morriam de rir. nisso chegava o macarrão e, enquanto o dono do restaruante esfalfava-se para servir, Milone, com uma voz idiota, anunciava: "Uma canção muito bonita: Quando Rosina desce do vilarejo... eu vou fazer a Rosina" Imaginem os clientes: quando o viam representando Rosina, com as gagues e as obscenidades de sempre, ficavam com os espaguetes pendurados no garfo, entre a boca e o prato. E não se tratava de grupos de açougueiros ou coisa parecida, eram todos grã-finos: os homens de terno azul escuro, engomados, uma pérola espetada na gravata; as mulheres de casaco de pele, cobertas de jóias, delicadas, preciosas. Falavam entre si, enquanto Milone bancava o palhaço: "É bom... é realmente bom", ou até mesmo alguém, alarmado, gritava: "Atenção, não contem por aí que nos o descobrimos... se não a coisa desanda". Entre as suas vulgaridades, Milone tinha uma canção em que, em uma determinada hora, para tornar o personagem mais ridículo, fazia com a boca um certo barulho que eu nem lhes conto. E você acreditam? Eram exatamente as madames mais afetadas que pediam bis para esta música.
É preciso dizer que, por ser ver tão aplaudido, o sucesso tinha subido à cabeça de Milone. Morava na casa de uma costureira, em um quarto mobiliado, escuro e úmiod, na via Cimarra. Agora, todas as vezes que eu ia pegá-lo alguma nova grosseria, uma nova vulgaridade. Acrescentava um certo escrúpulo mórbido, como se se tratasse de um grande ator preparando-se para a apresentação;  e eu, sentado na cama, olhando-o simular a dança do ventre na frente do espelho da cômoda, perguntava-me se, pro acaso, ele não fosse meio louco. "Mas não seria hora", perguntei-lhe num certo dia, "de inventar alguma coisa graciosa, comovente?" E ele:"´pra ver que você não entende nada... as pessoas quando comem querem rir e não se comover... e eu", acrescentou rancoroso, "faço elas rirem". Algum tempo depois, sempre por causa dessa mania de se aperfeiçoar, inventou de levar em uma maleta algumas roupas femininas pro exemplo, um chapeuzinho, uma echarpe, uma sainha para vestir na hora, para tornar a paródia mais cômica ainda. Esta idéia de travestir-se de mulher, nele, era quase uma mania; não podem imaginar que dureza era vê-lo chacoalhar-se com o chapeuzinho sobre os olhos e a saia amarrada na cintura, por cima das calças. Finalmente, não sabendo mais o que inventar, sugeriu que eu também bancasse o palhaço, mesmo continuando a dedilhar o violão. E aí eu me recusei.
Percorríamos o mairo número de restaurantes que conseguíamos, do meio-dia às rês e das oito às meia-noite. Visitávamos vários, dependendo do dia: um dia os restaurantes dos lados da piazza di Spagna; um dia aqueles ao redor da piazza Venezia; outro dia os restaurantes de Trastevere, outro dia ainda aqueles próximos da estação de trem. Entre um restaurante e outro, sempre correndo pelas ruas, não conversávamos: não havia intimidade entre nós. No fim da noite, íamos a uma cnatina e dividíamos o dinheiro. Depois, em silêncio, eu fumava um cigarro e Milone bebia um quarto de vinho. à tarde, Milone ensaiava os seus números à frente do espeçho; eu, por minha vez, dormia ou ia ao cinema.
Em uma noite de muito frio, depois de ter rodado as trattorias de Tratevere, entramos, mais para nos aquecermos do que para tocar, numa cantina atrás da piazza Mastai. Tratava-se de um espaço comprido, quase um corredor, com as mesas alinhadas ao longo da parede e, nas mesas, quase só gente pobre, bebendo vinho da casa e omendo comida embrulhaa me jornal. Não sei por que, a vaidade, já qeu não podia ser interesse, levou Milone a se exibir também naquela cantina. Escolheu então uma das suas músicas mais bonitas e, com os modos de sempre, reduziu-a, à força dos escárnios e das contorções, a uma porcria. Logo que acabou, recebeu um aplauso bastante frio e depois, de uma daquelas mesas, escutou-se uma voz: "Agora, quem vai cantar esta música sou eu".
Virei e vi que se aproximava um rapaz loiro, com um macacão de mecânico, bonito como um anjo, olhando para Milone com olhar furioso, como se quisesse comê-lo. "Você, comece a tocar", disse-me com autoridade, "do início." Milone, fingindo que estava candsado, deixou-se cair em uma cadeira perto da porta. O rapaz me fez sinal com a mão para começar e então se pôs a contar. Não digo que ele cantasse como um verdadeiro cantor, mas cantava com sentimento, com uma voz bonita, quente e tranquila, enfim, cantava como se deve cantar e como a música pedia para ser cantada. Além disseo, como eu já disse, era bonito, com aqueles seus cachos, especialmente se comparado a Milone, tão maciço e sórdido. Cantava virado para a cantina, olhando para uma mesa onde estava sentada uma moça sozinha, como se estivesse cantando para ela. Quando terminou, fez um gesto para Milone, com a mão estendida, como se dissesse: "è assim que se canta", e voltou para a mesinha onde o esperava a moça, que em seguida colocou os braços em volta do seu pescoço. Na cantina para dizer a verdade, aplaudiram por que ele tinha se incomodado em cantar. Mas eu o entendera; e, desta vez, Molone também tinha entendido.
Enquanto eu tocava, olhara frequantemnte para Milone; tinha visto ele passar muitas vezes a mão no rosto e sob os cabelos que lhe caíma na testa, como quem não está suprotanto ficr acordado e está caindo de sono. Mas não conseguia esconder uma expressão amarga que eu nunca tinha visto; a cada nova estrofe que o moço acertava, parecia que sua amargura crescia. Finalmente se levantou, espreguiçando-se e fingindo que bocejava e disse: "Bem, está na hora de ir dormi... estou com um sono...".
Despedimo-nos na esquina, com o habitual encontro marcado apr ao dia seguinte.  O que aconteceu durante a noite, reconstruí depois, mas são suposições. Eu disse que o sucesso tinha subido à cabeça de Milone, imaginando ser sabe-se lá que grande artista quando na verdade era um pobre coitado que bancava o palhaço para divertir as pessoas enquanto comim; de modo que foi grande o tombo que aquele rapaz doiro de macacão lhe deu com o seu gesto. Acredito qeu, enquanto o rapaz cantava, de repente, deve ter visto a si próprio como era e não como tinha aé então acreditado ser: um homenza~rrão de cinquenta anos que colocaa um babador e recitava a Vispa Teresa. Mas acho também que ele se julgava incapaz de cantar, mesmo tendo feito um pacto com o diabo. Ele, em suma, só conseguia fazer rir ridicularizando certas coisas. E estas certas coisas, por coincidência, eram exatamente aquelas que ele, na sua vida, nunca tinha conseguido ter.
Mas, como eu disse, são suposições. O certo é que a costureira que lhe alugava o quarto no dia seguinte o encontrou enforcado entre a janela e a cortina, no lugr em que geralmente ficavam penduradas as gaiolas doa passarinhos. Foram algunas transeuntes a notá-lo, da via Cimarra, vendo, através dos vidor, as pernas e os pés balançando no vazio. Despeitado como todo suicida, tinha fechado a porta à chave e apoiado na porta a cômoda com o espelho: talvez quisesse se ver, como quando ensaiava, enfiando o pescoço no laço. Em suma, tiveram que arrombar a porta, o espelho caiu e se quebrou. Levaram-no ao cemitério Verano e eu fui o único que o acompanhou, desta vez sem violão. A costureira recolocou o espelho, mas se consolou vendendo, a uma certa quantia o metro, a corda.

(O palhaço - págs, 72-79 - Alberto Moravia - Contos Romanos)

Alberto Moravia (Roma, 1907-1990) desde muito jovem tornou-se um escritor famoso e um jornalista de primeiro plano, um dos mais importantes escritor italiano do século XIX. Muitos de seus romances tornaram-se filmes de sucesso. Contos romanos é semelhante a um tabuleiro de que os personagens são peças, um pouco esquesitas em seus diferenes vícios, feiúras e deformidades, com as quais Moravia desenvolve o seu peculiar jogo literário, não com pouca comicidade derivada do desajuste dos protagonistas e da repetição das situações. O livro apresenta ainda umas da localização do histórico das referências dos contos.
Contos romanos /Alberto Moravia ; apresentação Loredana Caprana ; tradução Alessandra Caramori ; Ilustrações Marco Giannotti ; revisão da tradução Eugenio Vinci de Moraes. - São aulo : Berlendis & Vertecchia, 2002. (Letras Italianas)

Bem, outros palhaços continuam por lá, ou seria por cá... é só conferir por aqui!

sábado, 26 de novembro de 2011

Presente de um Poeta - Pablo Neruda




"Por ti junto aos jardins cheios de flores novas
me doem os perfumes da primavera.
Esqueci o teu rosto, não me lembro de tuas mãos,
como beijam os teus lábios?
Por ti amo as brancas estátuas adormecidas nos parques,
as brancas estátuas que não têm voz nem olhar.
Esqueci tua voz, tua voz alegre, me esqueci dos teus olhos.
Como uma flor a seu perfume, estou atado à tua lembrança
imprecisa. Estou perto da dor como uma ferida,
se me tocas me farás um dano irremediável.
Não me lembro mais do teu amor e no entanto te advinho
atrás de todas as janelas.
Por ti me doem os pesados perfumes do estio:
por ti volto a espreitar os signos que precipitam os desejos,
as estrelas em fuga, os objetos que caem."

De Para nacer he nacido

Presente de um poeta / Pablo Neruda; tradução de Thiago de Mello; pinturas de Dafni Amecke Tzitzivakos.

Edição: Lidia María Riba
Colaboração literária: Emilia de Zuleta
Desenho: Renata Biernat
Direção de arte: Trinidad Vergara
Neruda, Pablo, 1904-1973.
Pinturas de Dafini Amecke Tzitzivakos.
Cotia, SP: Vergara & Riba Editoras, 2004. (Coleção Melhor dos melhores)
Título original: Regalo de um poeta.
1a reimpr. da 3a. ed. de 2003.

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Vou chamar a polícia - Irvin D. Yalom



Irvin D. Yalom, 1931 - Vou chamar a polícia: e outras histórias de terapia e literatura / Irvin D. Yalom ; [tradução Lucia Ribeiro da Silva, Mauro Pinheiro]. - Rio de Janeiro: Agir, 2009.

O livro aborda temas complexos como a jornada do homem à busca de sua essência mas o faz de maneira farta em palavras que o autor doa em vida através de sua obra existencial que literalmente retira de sua caminhada, experiência e troca com o outro seja um amigo, um livro (para não falar alguns) escrito ou um divã.

Esse sujeito, ser em alta produtividade no mundo atual, que ao falar e identificar suas raizes de seus sintomas, embora silenciado pela ciência (o médico já não é um profeta na era moderna), nunca deixou de viver nas tradições orais, nas narrativas épicas e mitológicas, na poesia e no romance moderno - de Dom Quixote a Harry Potter. O que convencionamos chamar de literatura evidencia a necessidade que tem o homem de dar uma forma a seu sofrimento e de compreender melhor a complexidade dos dramas que o afligem. Médicos que se transformaram em escritores famosos, como Guimarães Rosa, Tchekhov, Conan Doyle, mesclam em seus escritos a vivência originada da medicina, a cuja prática ele foi compelido por circunstâncias familiares, e seu sonho adolescente de um dia se tornar um romancista.  Assim, Yahom investiga a relação entre a ficção e as histórias contadas por seus pacientes. As confissões que fazemos em uma sessão de terapia - a reconstrução de nossas vidas - pertencem ao terreno da verdade ou têm parentesco com a ficção? Nossas lembranças têm uma precisão fotográfica ou são interpretações subjetivas de acontecimentos passados? A realidade tem uma natureza objetiva ou é sempre única, impossível de ser compartilhada, fruto do psiquismo de cada um?

Nesta coletânea o autor resgata sua dívida com os grandes ficcionistas e pensadores, que jamais deixaram de considerar os nosso conflitos e a busca de um sentido para eles como inerentes à condição humana, independentes dos rumos da ciência e do saber acumulado nos laboratórios. Trabalha assim,  entre outros, por Epicuro, Sófocles, Shakespeare, Tólstói, Dostoiévski, Nietzsche, Sartre e Camus, Irvin Yalom transforma, por um lado, a fala de seus pacientes, em narrativas que a sensibilidade de clínico e as qualidades de escritor aproximam dos melhores romances. Um autor incomum.

"Paul e eu éramos muito amigos. Quando soubemos de um levante de judeus contra os nazistas na Eslováquia, resolvemos entrar para a Resistência de lá. Como eu não falava eslovaco, ele achou melhor ir na frente para sondar a situação. Se as perspectivas lhe parecessem boas, encontraria um canal clandestino e voltaria a Budapeste para me buscar. Fui com ele à principal estação ferroviária da capital e, quando o trem partiu, eu tinha certeza de que tornaria a vê-lo dali a umas duas semanas. Só que nunca mais o vi. Procurei notícias de Paul depois da guerra, mas não consegui o menor vestígio. Tenho certeza de que os nazistas o mataram."

"- A gente se acostuma, Irv; é difícil acreditar, mas a gente se acostuma. Hoje em dia, nem eu consigo acreditar que em algum momento aquilo aconteceu, mas, na verdade, houve época em que isso acontecia diariamente. Assisti a vários desses fuzilamentos em massa e sabia que, mesmo que os tiros não fossem fatais, as vítimas não teriam como escapar da morte depois de serem lançadas na água gelada."

(leia um capítulo aqui)

Desenhando o mapa da nossa vida psíquica construído por caminhos tortuosos, que Irvin D. Yalom tenta descortinar com sua narrativa em textos como "Vou chamar a polícia", que dá nome ao título do livro, descortina ainda, a posição do terapeuta, sua sinceridade, a exposição de seus próprios sentimentos, os limites de seu envolvimento com os pacientes e os benefícios de analisar, os resultados de cada sessão de terapia. Irvin oferece ao leitor os caminhos que trilhou ao longo de sua carreira seja como pedagogo, psiquiatra ou célebre romancista, autor do livro Quando Nietzsche Chorou, já resenhado aqui no blog.

Irvin D. Yalom nasceu em 1931, em Washington, D.C. Seus pais eram imigrantes russos que se estabeleceram nos Estados Unidos em busca de uma vida melhor. Desde criança, Yalom demonstrava profundo interesse pelos livros. Talvez tenha vindo daí sua paixão pela escrita e a vontade de transofrmar em narrativa o precioso material que seu trabalho como psiquiatra lhe daria. Atualmente é professor emérito de Psiquiatria da Universidade de Stanford. No Brasil foram publicados, de sua autoria, Quando Nietzsche chorou, A cura de Schopenhauer, Mentiras no divã, Os desafios da terapia, O carrasco do amor, Mamãe e o sentido da vida e De frente para o sol.

(Volto... fui ali comer uma pizza de banana que hoje é sexta-feira e a semana foi difícil... e lógico, ler o livrinho que como a pizza está quentinho quentinho - acabou de chegar!)

Uau! Maravilhoso o livro! parada somente para um cafezinho de chaleira. Resgatando questões antigas... Muito bom!

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Eu tomo conta do mundo - Clarice Lispector

Clarice Lispector

"Sou uma pessoa muito ocupada: tomo conta do mundo. Todos os dias olho pelo teraço para o pedaço de praia com mar, e vejo às vezes que as espumas parecem mais brancas e que às vezes durante à noite as águas avançaram inquietas, vejo isso pela marca que as ondas deixaram na areia. Olho as amendoeiras de minha rua. Presto atenção se o céu de noite, antes de eu dormir e tomar conta do mundo em forma de sonho,  se o céu de noite está estrelado e azul-marinho, porque em certas noites em vez de negro parece azul-marinho. O cosmos me dá muito trabalho, sobretudo porque vejo que Deus é o cosmos. Disso eu tomo conta com alguma relutância.
Observo o menino de uns dez anos, vestido de trapose magérrimo. Terá futura tuberculose, se é que já não a tem.

No Jardim Botânico, então, eu fico exaurida, tenho que tomar conta com o olhar das mil plantas e árvores, e sobretudo das vitórias-régias.

Que se repare que não menciono nenhuma vez as minhas impressões emotivas: lucidamente apenas falo de algumas das milhares de coisas e pessoas de quem eu tomo conta. Também não se trata de um emprego pois dinheiro não ganho por isso. Fico apenas sabendo como é o mundo.

Se tomar conta do mundo dá trabalho? Sim. E lembro-me de um rosto terrivelmente inexpressível de uma mulher que vi na rua. Tomo conta dos milhares de favelados pelas encostas acima. Observo em mim mesma as mudanças de estação: eu claramente mudo com elas.

Hão de me perguntar por que tomo conta do mundo: é que nasci assim, incumbida. E sou responsável por tudo o que existe, inclusive pelas guerras e pelos crimes de leso-corpo e lesa-alma. Sou inclusive responsável pelo Deus que está em constante cósmica evolução para melhor.

Tomo desde criança conta de uma fileira de formigas: elas andam em fila indiana carregando um pedacinho de folha, o que não impede que cada uma, encontrando uma fila de formigas que venha de direção oposta, pare para dizer alguma coisa às outras.

Li o livro célebre sobre as abelhas, e tomei desde então conta das abelhas, sobretudo da rainha-mãe. As abelhas voam e lidam com flores: isto eu constatei.

Mas as formigas têm uma cintura muito fininha. Nela, pequena como é, cabe um mundo que, se eu não tomar cuidado, me escapa: senso instintivo de organização, linguagem para além do supersônico aos nossos ouvidos, e provavelmente para sentimentos instintivos de amor-sentimento, já que falam. Tomei muita conta das formigas quando era pequena, e agora, que eu queria tanto poder revê-las, não encontro uma. Que não houve matança delas, eu sei porque se tivesse havido eu já teria sabido. Tomar conta do mundo exige também muita paciência: tenho que esperar pelo dia em que me apareça uma formiga. Paciência: observar as flores imperceptivelmente e lentamente se abrindo.

Só não encontrei ainda a quem prestar contas."
(A descoberta do mundo - Clarice Lispector).

"Se não for prá te adorar... para que nasci..."




quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Antônio Lobo Antunes - 60 crônicas - As coisas da vida



Antônio Lobo Antunes
As coisas da vida
60 crônicas


As pessoas crescidas

"As pessoas crescidas fui-as conhecendo de baixo para cima à medida que a minha idade ia subindo em centímetros, marcadas na parede pelo lápis da mãe. Primeiro eram apenas sapatos, por vezes descobertos sob a cama, enormes, sem pé dentro, e logo calçados por mim para caminhar pela casa, erguendo as pernas como um escafandrista, num estrondo imenso de solas. Depois tomei conhecimento dos joelhos cobertos de fazenda ou de meias de vidro, formando ao redor da mesa debaixo da qual eu garinhava uma paliçada que me impedia de fugir. A seguir vieram as barrigas de onde a voz, a tosse e a autoridade saíam apesar do esforço inútil de suspensórios e de cintos.

Ao chegar à altura da toalha aprendi a distinguir os adultos uns dos outros pelos remédios entre o guardanapo e o copo: as gotas da avó, os xaropes do avô, as várias cores dos comprimidos das tias, as caixinhas de prata das pastilhas dos primos, o vaporizador da asma do padrinho que ele recebia abrindo as mandíbulas numa ansiedade de cherne. Compreendi por essa época que tinham o riso desmontável: tiravam as piadas da boca e lavavam-nas, a seguir no almoço, com uma escovinha especial. Acontece-me encontrá-las sob a forma de gargantilhas por trás do despertador nas manhãs de domingo, a troçarem dos rostos que sem elas envelheciam mil anos de rugas murchas como flores de herbário devorando os lábios com as suas pregas concêntricas."


Sessenta crônicas, assim tecidas pela narrativa de Lobo, o Antônio Antunes. Um charme construído como sua trajetória de riquíssima vida. Ser cronista, uma faceta menos conhecida do autor, porém uma seleção de sessenta textos já publicados principalmente no jornal Público e na revista Visão de Portugal, um escritor diferente e genial.

Ele fala de si, de relacionamentos e despedidas, num completo entrelaçamento entre realidade e ficção. Como resultado, cria textos brilhantes, em que pequenas passagens da vida ganham dimensão universal. As crônicas são organizadas em sete grandes temas - infância, literatura, relacionamentos amorosos, humor, cenas do cotidiano, guerra em Angola e memórias.

Antônio Lobo Antunes nasceu em 1942, em Lisboa. Formado em medicina, com especializaçao em psiquiatria, serviu como médico do Exército português em Angola nos últimos anos da guerra naquele país, entre 1970 e 1973.

Autor de uma obra extensa, de repercussão mundial, Lobo Antunes recebeu diversos prêmios literários, como o Grande Prêmio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores, em 1999, por Exortação aos crocodilos. Em 2007, recebeu o Prêmio Camões de literatura, o maior reconhecimento dado a um autor de língua portuguesa vivo, e, em 2008, o Prêmio Juan Rulfo.

domingo, 20 de novembro de 2011

Clarice Lispector - A descoberta do mundo

 Cavaleiros - Macaé - RJ - Brasil
As águas do mar

"Aí está ele, o mar, o mais ininteligível das existências não humanas. E aqui está a mulher, de pé na praia, o mais ininteligível dos seres vivos. Como o ser humano fez um dia uma pergunta sobre si mesmo, tornou-se o mais ininteligível dos seres vivos. Ela e o mar.

Só poderia haver um encontro de seus mistérios se um se entregasse ao outro: a entrega de dois mundos incognoscíveis feita com a confiança com que se entregariam duas compreensões.

Ela olha o mar, é o que pode fazer. Ele só lhe é delimitado pela linha do horizonte, isto é, pela sua incapacidade humana de ver a curvatura da terra.

São seis horas da manhã. Só um cão livre hesita na praia, um cão negro. Por que é que um cão é tão livre? Porque ele é o mistério vivo que não se indaga. A mulher hesita porque vai entrar.

Seu corpo se consola com sua própria exiguidade em relação à vastidão do mar porque é a exiguidade do corpo que o permite manter-se quente e é essa exiguidade que a torna pobre e livre gente, com sua parte de liberdade de cão nas areias. Esse corpo entrará no ilimitado frio que sem raiva ruge no silêncio das seis horas. A mulher não está sabendo: não está cumprindo uma coragem. Com a praia vazia nessa hora da manhã, ela não tem o exemplo de outros humanos que transformam a entrada no mar em simples jogo leviano de viver. Ela está sozinha. O mar salgado não é sozinho porque é salgado e grande, e isso é uma realização. Nessa hora ela se conhece menos ainda do que conhece o mar. Sua coragem é a de, não se conhecendo, no entanto, prosseguir. É fato não se conhecer, e não se conhecer exige coragem.

Vai entrando. A água salgada é de um frio que lhe arrepia em ritual as pernas. Mas uma alegria fatal - a alegria é uma fatalidade - já a tomou, embora nem lhe ocorra sorrir. Pelo contrário, está muito séria. O cheiro é de uma maresia tonteante que a desperta de seus mais adormecidos sonos seculares. E agora ela está alerta, mesmo sem pensar, como um caçador está alerta sem pensar. A mulher é agora uma compacta e uma leve e uma aguda - e abre caminho na gelidez que, líquida, se opõe a ela, e no entanto a deixa entrar, como no amor em que a oposição pode ser um pedido.

O caminho lento aumenta sua coragem secreta. E de repente ela se deixa cobrir pela primeira onda. O sal, o iodo, tudo líquido, deixam-na por uns instantes cega, toda escorregando - espantada de pé, fertilizada.

Agora o frio se transforma em frígido. Avançando, ela abre o mar pelo meio. Já não precisa da coragem, agora já é antiga no ritual. Abaixa a cabeça dentro do brilho do mar, e retira uma cabeleira que sai escorrendo toda sobre os olhos salgados que ardem. Brinca com a mão na água, pausada, os cabelos ao sol quase imediatamente já estão se endurecendo de sal. Com a concha das mãos faz o que sempre fez no mar, e com a altivez dos que nunca darão explicação nem a eles mesmos, com a concha das mãos cheias de água, bebe em goles grandes bons.

E era isto que lhe estava faltando: o mar por dentro como o líquido espesso de um homem. Agora ela está toda igual a si mesma. A garganta alimentada se constringe pelo sal, os olhos avermelham-se pelo sal secando pelo sol, as ondas suaves lhe batem e voltam pois ela é um anteparo compacto.

Mergulha de novo, de novo bebe, mais água, agora sem sofreguidão pois não precisa mais. Ela é a amante que sabe que terá tudo de novo. O sol se abre mais e arrepia-a ao secá-la, ela mergulha de novo: está cada vez menos sôfrega e menos aguda. Agora sabe o que quer. Quer ficar de pé parada no mar. Assim fica, pois. Como contra os costados de um navio, a água bate, volta, bate. A mulher não recebe transmissões. Não precisa de comunicação.

Depois caminha dentro da água de volta à praia. Não está caminhando sobre as águas - ah nunca faria isso depois que há milênios já andaram sobre as águas - mas ninguém lhe tira isso: caminhar dentro das águas. Às vezes o mar lhe opões resistência puxando-a com força para trás, mas então a proa da mulher avança um pouco mais dura e áspera.

E agora pisa na areia. Sabe que está brilhando de água, e sal e sol. Mesmo que o esqueça daqui a uns minutos, nunca poderá perder tudo isso. E sabe de algum modo obscuro que seus cabelos escorridos são de náufrago. Porque sabe - sabe que fez um perigo. Um perigo tão amigo quanto o ser humano."

(A descoberta do mundo, págs 470, 471 - Clarice Lispector)


quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Irvin D. Yalom - Quando Nietzsche chorou




Quando Nietzsche chorou / Irvin D. Yalom; tradução de Ivo Korytowski. - Rio de Janeiro: Ediouro, 2005.


"Viver com segurança é perigoso"

"Quando Nietzsche chorou", conforme postagem anterior (haja choro) em que mencionei o filme, que certamente difere em muito do conteúdo do nobre livro. Fica a sutileza do tema, entretanto, não puxando brasa para a leitura do livro, mas o livro é para uma vida. Belíssimo!

Felicíssima pelo retorno do amado livro Quando Nietzsche chorou o que permitirá uma releitura (assim que possível trago uma foto do estimado) agora com maior observação aos pontos neste raro (literalmente falando pois em rede não encontrei) livro de história comovente e bem forjada onde há o entralaçamento entre ficção e realidade. Irvin Yalom leva o leitor a participar de discussões profundas das dores da alma através de diversos encontros que ocorreram entre os irresistíveis personagens doutor Josef Breuer, o filósofo Friedrich Nietzsche e o jovem médico Sigmund Freud.

No final do século XIX Josef Breuer está envolvido em uma atmosfera de glórias, após curar uma paciente através de seu novo método de tratamento, a "terapia através da conversa". O que deveria ser seu melhor momento se revela num grande tormento - ele tem obsessivas fantasias sexuais com Anna O., a paciente recém-curada, e em decorrência disso sofre de insônia e pesadelos.

De férias em Veneza, Breuer encontra a jovem russa Lou Salomé que lhe pede um favor: tratar da depressão suicida de seu amigo Friedrich Nietzsche.

21 de Outubro de 1882
"Doutor Breuer,
Preciso vê-lo para um assunto da maior urgência. O futuro da filosofia alemã está em jogo. Encontre-me amanhã cedo às nove horas no Café Sorrento."
                                                                                                    Lou Salomé"

O filósofo alemão já tentara tratamento com dezenas de médicos em toda a Europa e quase sempre seu orgulho e a natureza de seu sofrimento se configurariam em obstáculos intransponíveis. O que se estabelece entre eles é uma relação na qual as funções de médico e paciente se confundem, pois Breuer encontra na filosofia de Nietzsche algumas respostas para suas próprias dores existenciais.

"Terá sido apenas a duas semanas que tentei manipulá-lo para revelar algum pequeno fragmento de si, que reclamei com Max e Frau Becker sobre o sigilo dele, que levei meu ouviso aos lábios dele para ouvir: "Ajude-me, ajude-me", que lhe prometi: "Conte comigo"?
Por que, então negligenciei-o hoje? Terei ficado ganancioso? Esse processo de aconselhamento - quanto mais se estende, menos o compreendo. Porém, é irresistível. Cada vez mais, penso em minhas conversas com Nietzsche; às vezes chegam a interromper uma fantasia com Bertha. Essas sessões se tornaram o centro de meu dia. Sinto-me ansioso pela minha sessão e, com frequência, mal consigo esperar pela próxima. Será por isso que deixei Nietzsche  me desnudar hoje?
No futuro - quem sabe quando, talvez daqui a cinquenta anos? -, esse tratamento através da conversa poderá tornar-se corriqueiro. "Médicos da angústia" se tornarão uma especialidade típica. E as faculdades de medicina, ou talvez os departamentos de filosofia, os treinarão.
O que deveria contar o currículo do futuro "Médico da angústia"? No momento, posso estar certo de uma caderia essencial: "relacionamento"! É aí que a coisa complica. Assim como os cirurgiões precisam primeiro aprender anatomia, o futuro "médico da angústia" precisa primeiro entender o relacionamento entre o que aconselha e o aconselhado.
Observar um relacionamento não é fácil quando eu mesmo faço parte dele. Entretanto, noto tendências impressionantes.
Acreditava que pudesse ajudá-lo. Isso não mais ocorre. Tenho pouco a lhe oferecer. Ele tem tudo a me oferecer."

Bela passagem o encontro de Breuer e Nietzsche acerca da memória paterna:

"- Acima de tudo, acho que sinto falta de sua atenção. Ele sempre foi minha principal platéia, mesmo no finalzinho da vida, quando sofreu grande confusão mental e perda de memória. Eu não deixava de lhe contar meus sucessos, meus triunfos de diagnósticos, minhas descobertas nas pesquisas, mesmo minhas doações de caridade. Mesmo depois de morrer, continuou sendo minha platéia. Durante anos, imagineio-o espiando por cima de meus ombros, observando e aprovando minhas realizações. Quanto mais sua imagem se desvanece, mais luto contra o sentimento de que minhas atividades e meus sucessos são todos evanescentes, de que não têm significado real.
- Está dizendo, Josef, que se seus sucessos pudessem ser registrados na mente efêmera de seu pai, 'então' possuiriam significado?
- Sei que é irracional. Parece muito com a questão do som de uma árvore que cai numa floresta vazia. A atividade não observada terá um significado?
- A diferença é, claramente, que a árvore não tem ouvidos, enquanto é você próprio que confere significado.
- Friedrich, você é mais auto-suficiente do que eu... mais do que qualquer pessoa que conheci! Lembro-me de ter admirado, em nosso primeiro encontro, sua capacidade de florescer sem qualquer reconhecimento dos colegas.
- Há muito tempo, Josef, aprendi que é mais fácil enfrentar uma má reputação do que uma má consciência. Ademais, não sou ganancioso; não escrevo para a turba. E sei ser paciente. Talvez meus discípulos ainda não tenham nascido. Somente o depois de amanhã me pertence. Alguns filósofos nascem postumamente!

Freud, não menos importante, entretanto, em início de carreira (na época) tem participação menos atuante na referida ficção. Deixo aqui minha contribuição ao ilustre o qual sou grande admiradora pelo fato do nobre ter sido grande leitor chegando ao ponto de receber castigo paterno por ter gasto além que suas parcas economias na compra de livros, livros e mais livros (isto aos 17 anos, ainda um jovem estudante iniciante nas letras).

Era isto, inté!
Irvin D. Yalom é Psicoterapeuta e professor de psiquiatria da Escola de Medicina da Universidade de Stanford, com vários títulos na área acadêmica.

domingo, 13 de novembro de 2011

Virginia Woolf - Entre os Atos

Entre os Atos - Virginia Woolf - tradução Lya Luft
prefácio Antônio Bivar
Novo Século Editora, 2008

"Não possuímos as palavras...
Elas estão por trás dos olhos, não sobre os lábios."

"Os livros são o espelho da alma."

Entre os Atos, de Virginia Woolf, é um livro para se ler detalhadamente, minuciosamente, sentindo cada compasso, cada ritmo ao percorrer suas páginas. Virgínia magistralmente coloca o mundo como representação onde cada ser expõe sua máscara na atuação do palco improvisado que se constrói ininterruptamente na história humana.

Bem poderia ter lido o aviso no belo prefácio de Lya Luft: Virginia se despede. Exagero? não aos sentidos.

"O último romance escrito por Virgínia Woolf, Entre os Atos, foi publicado postumamente, quatro meses depois de seu suicídio numa sexta-feira, 28 de março de 1941. Nascida em 25 de janeiro de 1882, Virgínia estava com 59 anos, dois meses e dois dias, quando afogou-se no Rio Ouse, meia milha da Monk´s House, sua residência campestre emRodmell, no condado de Sussex (distante pouco mais de uma hora de trem de Londres). A última pessoa que a viu foi John Hubbard, empegado de uma fazenda local. Hubbard contou que era por volta das 11h30 da manhã quando Virginia, de sobretudo e bengala, passou por ele em direção ao rio.
Virginia largou a bengala, enfiou pedras nos bolsos do casaco e entrou no rio. Deixara, em casa, cartas para o marido Leonard e para a irmã Vanesa 9que moraa a poucos quilômetros, na Fazenda Charleston). Nas cartas ela explicava ter certeza de estar ficando loucanovamente. E desta vez sem esperança de cura. creditava que nunca mais ficaria boa e não achava certo continuar dando trabalho aos outros. Para o marido ela escreveu: "Querido, tenho a certeza de que estou enlouquecendo de novo. De modo que estou fazendo o que me parece melhor. Não consigo mais lutar. Sei que estou estragando a sua vida e que semmim você poderá trabalhar. Você foi absolutamente paciente comigo e incrivelmente bom. Se alguém pudese me salvar, teria sido você." E termina: "Não creio que duas pessoas tenham sido mais felizes do que nós fomos."
(Lya Luft)


Pointz Hall, título original, o romance só ganhou o nome de "Entre os Atos" (Between the Acts) no dia da entrega para publicação e teve escrita simultânea a uma biografia para um amigo, Roger Fry, que a deixou, segundo páginas de seu diário, tensa por ter que abandonar seu livro original pelos encargos da proximidade da guerra que logo estourou. Segundo leitura de seu diário, Virginia nos anos que escreveu "Entre os Atos" parecia vivíssima e ágil. Por ocasião de Janeiro de 1939 Virginia se encontra com o pai psicanálise e ganha desse um narciso de presente. Desde 1924, em tradução de James Strachey, a editora de Virginia e Leonard Woolf vinha publicando as obras de Freud, já velho e doente por ocasião dessa visita.

"Aos leitores de "Entre os Atos" (em mais uma excelente tradução de Lya Luft) fica a forte impressão de que Virginia Woolf encerrou brilhantemente sua jornada de romancista fazendo perfeito uso da dialética da história. Não apenas a história de sua Inglaterra mas a história da humanidade, a luta da civilização contra a selvageria. Como escreveu John Lehmann: "Apesar de rude e fragmentada, Entre os Atos é a obra mais vigorosa e bem amarrada de Virginia Woolf. E o estranho simbolismo dá ao romance beleza e uma aterrorizante profundidade."
(Antônio Bivar - Membro do The Virginia Woolf - Society of Great Britain)


A narrativa de Virginia Woolf tem grande estilo, onde enlaça o humano neste conflito belamente montado que por vezes a beleza da força de suas singelas imagens são avassaladoras, seja nos contrastes de um ajuntamento de borboletas ou de uma tempestade.

"Baixou o jornal, e todos olharam para o céu a fim de constatar se o céu obedecia ao meteorologista. O tempo, sem dúvida, mostrava-se instável. Num momento, o jardim aparecia verde; noutro, cinzento. li vinha o sol - ilimitado êxtase de alegria, abraçando cada flor, cada folha. Depois, afastava-se compadecido, cobrindo a face como se não quisesse ver os sofrimentos humanos. Nas nuvens havia negligência, falta de simetria e ordem, quando se adensavam ou se esgarçavam Era a uma lei própria que obedeciam? Ou a lei nenhuma? Alguma não passavam de mechas de cabelo branco. Uma delas, bem no alto, muito distante, solidificara-se em dourado alabastro; era um mármore imortal. Por baixo dela haviz azul, azul puro, azul negro, azul jamais filtrado até a terra, esquivando-se a qualquer registro. Jamais caía sobre o mundo como o sol, a combra ou a chuva; antes, ignorava completamente essa esferazinha de terra colorida. Nenhuma flor jamais sentia esse azul; nenhum jardim."
(Entre Atos - Virgínia Woolf - págs.34,35)


Nascida em Londres, em 1882, Virginia Woolf tornou-se uma das mais importantes escritoras inglesas, conhecida também por suas posições feministas.Influenciada por Proust e Joyce, Virginia superou os limites impostos pela ficção realista, integrando à narrativa uma simultaneidade de eventos, criando uma nova concepção do tempo narrativo. Em 1941, após uma grave crise de depressão, Virgínia suicida-se no rio Ouse. Deixou ensaios, contos, biografias, uma extensa correspondência e romances como A Viagem, Noite e dia, O quarto de Jacob, As Ondas, entre outros.

 
(Lendo e construindo)

domingo, 6 de novembro de 2011

Van Gogh - Obra completa de pintura


 I Volume - Etten, Abril de 1881 - Paris, Fevereiro de 1888.


Leio o título desta postagem clandestina basicamente para medir o nível de visitação familiar a este espaço porque fiz uma rápida visita aos estimados livros que vão além de minhas poucas prateleiras e ops, Vicent van Gogh!


Auto-Retrato
Paris, Primavera de 1887
Óleo sobre cartolina, 42 x 33 ,7cm
Chicago, The Art Institute of Chicago

"Os Retratos"

"O trabalho é o que mais me distrai e se conseguisse lançar mão a ele com todas as minhas forças, talvez me curasse de vez. o facto de não terr modelos, e várias outras razões é que impedem que isso aconteça." Quando van Gogh escreveu estas palavras (retirada da carta 602), acabara de recuperar de um acesso loucura, o primeiro que tivera em Saint-Rémy. Uma paranóia repentina apoderara-se dele quando estava em frente ao cavalete, a começar a pintar a ominosa "Entrada para uma Pedreira", de que os críticos, desde então, se têm servido como prova documental da instabilidade psíquica do artista. Durante cinco semanas de Julho e Agosto, van Gogh esteve mergulhado numa escuridão mental. Tetntara engolir tinta da que usava para pintar. Esse incidente tem sido frequentemente visto como uma tentativa de suicidio. No entanto, parece-nos antes um processo regressivo de apropriação, uma ânsia infantil de absorver o material que dominava tanto o seu trabalho como a sua vida. Como é obvio, os administradores do hospício tiraram-lhe todos os materiais com que pintav. Assim que recuperou as faculdades mentais, van Gogh decidiu começar tudo de novo.
Receoso, evitava toda e qualquer excitação, tendo o cuidado de não sair do hospício. Limitado aos motivos selecionados no interior do edifício e sentindo a necessidade de se justificar não só diante dos administradores, mas também diante de si próprio, va Gogh optou pelo óbvio: começou a pintar uma série de retratos. Ao todos, pintou seis, os únicos do período de Saint-Rémy. Distinguem-se não só por serem casos isolados, mas também por constituírem manifestações bem conseguidas da arte de pintar retratos. Van Gogh buscava os olhos do retrato, o espelho da alma onde encontraria refletida uma imagem de si próprio. O olhar fixo dos retratos passou a ter mais importância do que anteriormente. Van Gogh foi o modelo de três dos retratos, evitando assim o problema que lamentara na Carta 602 (a falta de modelos) e fazendo da necessidade uma virtude.

O auto-retrato da página 534 (acima), a cabeça muito magra de van Gogh manifesta ainda sinais evidentes dos últimos conflitos. Não é só o contraste de cores que faz com que o seu rosto pareça mais pálido do que o habitual; o verde amarelado descorado, ao que parece, retrata fielmente o seu aspecto naquela altura. "Comecei-o no dia em que me levantei pela primeira vez", escreveu ele na Carta 604, "quando estava magro e pálido", um pobre diabo." Ao contrário do que normalmente acontece nos seus auto-retratos, van Gogh faz-se aqui acompanhar dos atributos do artista não só para nos revela qual a sua profissão, mas també pela capacidade que a paleta e a bata tê de disfarçar a realidade e encorajar o pintor. O seu olhar fixo e circunspecto revela alguma relutância em se cruzar com o nosso, sugerindo que o mundo da tela é um local mais clamo do que o do exterior. Ao registrar este olhar, van Gogh recorreu a um dos truques mais antigos em pintura: os seus olhos não afocam as coisas de uma forma paralela, conferindo esta divergência palpável uma certa ambiguidade ao objecto observado. Ficamos com a sensação de que aqueles olhos observam antes, introsectivamente, mundos imaginários, onde a visão literal não é necessária, e não tanto coisas reais. Simultaneamente cautelosos e visionários, são olhos que reflectem a alma de um homem que recebera o rótulo de louco.


"Vicent van Gogh era filho de um pastor protestante holandês, Theodorus van Gogh, e de sua mulher, Anna Cornelia. O seu primeiro filho morera à nascença; exatamente um ano depois dessa data, a 30 de Março de 1853, um outro rapaz via a luz do dia. A este filho saudável foram dados os nomes do primeiro nado-morto, Vicent Wilem, em homenagem aos dois avós. Por isso o primeiro dia de vida de Vicent van Gogh já trazia um agoiro. Este facto curioso não deve ter perturbado muito os pais, mas desde então um verdadeiro exército de psicanalistas tem tentado responder ao fascínio permanente de uma criança que nasceu no aniversário da sua morte, por assim dizer. E também poderá acontecer que o gasto de Vicent pelo paradoxal tenha surgido desta notável coincidência."

Lindíssimo, obra completíssima que faz uma descrição da vida e obra de Van Gogh em relato seja através de  uma carta, um fato familiar que mencione, enfim, de forma socio-cultural unindo  neste livro amplo material de pesquisa nas 733 páginas, pois voltando a Van Gogh, melhor pouca prosa e muita contemplação. Será?

"Quando penso no passado - quando penso no futuro, em todas as dificuldades quase insuperáveis, na vasta e árdua labuta pela qual não sinto qualquer gosto e que eu, gostaria de evitar, quando penso nos olhos de tanta gente a olhar espantado para mim - pessoas que saberão qual a razão por que não tive êxito, pessoas que não farão as censuras costumeiras porque, experimentadas e habituadas em todas as coisas boas e decentes em tudo o que é ouro requintado, dirão através das suas expressões: nós ajudámos-te, fomos uma luz no teu caminho - fizemos o que podíamos por ti; queria-lo sinceramente? Qual é a nossa recompensa? Onde está o fruto do nosso trabalho?"

(Vicent Van Gogh)


Jarra com Papoilas, Lóios, Peónias e Crisântemos
Paris, Verão de 1886
Óleo sobre tela, 99 x 79 cm
Otterlo, Rijksmuseum Kroller-Muller

A Formação de um artista (1853-1883)
Os Anos em Nuenen (1883-1885)
A Vida na Cidade (1885-1888)
Pintura e Utopia (Arles, Fevereiro de 1888 a Maio de 1889)
Quase um Grito de Medo (Saint-Rémy, Maio de 1889 a Maio de 1890)
O Fim (Auvers-sur-Oise, Maio a Julho de 1890
Vicent van Gogh (1853-1890) Uma Cronologia


Em tempo: andei cochilando na postagem. A capa do livro que consultei em rede (imagem inicial - pra inglês ver) não é o que tenho aqui (idioma nacional). Bem, vou corrigir e volto logo logo.


Vicent van Gogh - Obra Completa de Pintura - Ingo F. Walther - Rainer Metzger - I Volume - Etten, Abril de 1881 - Paris, Fevereiro de 1888, 733 págs. Editora Taschen

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

O palhaço ->Selton Mello


Hoje resolvi me presentear duplamente (um livro, em breve conto) ...fui assistir o palhaço!

Sinopse:

Benjamim (Selton Mello) e Valdemar (Paulo José) formam a dupla de palhaços Pangaré e Puro Sangue. Benjamim é um palhaço sem identidade, CPF e comprovante de residência. Ele vive pelas estradas na companhia da divertida trupe do Circo Esperança. Benjamim acha que perdeu a graça... parte em busca de sua identidade, literalmente.

Na construção desta trupe, as facetas sociais apresentadas em forma de personagens como Justo, o delegado, os vários prefeitos, gente simples do povo e as possibilidades da busca de se viver andarilhamente, 'enterrando o morto', como chamam, quando 'batem a estaca' do circo em um terreno abandonado. As relações de poder são expostas nos bastidores dos fazedores de alegria e até mesmo aquele que leva a arte do riso pode se perguntar: e quem me faz sorrir?



Bem, falar em palhaço é falar as palavras do elogio da Bobagemafinal o amor é contagioso!

Confira com a palhaçada: site O palhaço , Blog O palhaço , Circonteúdo ,  Family Circus .

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Quando Nietzsche Chorou



Surpresa ao encontrar o filme Quando Nietzsche Chorou, título similar ao do livro que estou paquerando uma releitura desde uns anos anteriores, visto que continua emprestado o que de certa forma impossibilita minha leitura assim como capacidade de construção de uma resenha. Falo título similar pois o fato de ser de mesmo título não significa que o conteúdo seja fiel à história apresentada no rico livro.

Cá estou com o filme Quando Nietzsche Chorou para confirmar se a qualidade da construção da história é de igual valor a excelente obra literária de Irvin D. Yalom, título que traça paralelo entre ficção e realidade e apresenta personagens históricos como Josef Breuer, um dos pais da psicanálise, o jovem Sigmund Freud e o filósofo Friedrich Nietzsche, obra esgotada no mercado.

Possível que só retorne com as impressões do filme  após uma releitura do livro entretanto asseguro que é um filme para ser visto e revisto pois a mensagem, intrínseca, terá sua chave desvendada somente com o tempo e a vivência que a tudo descortina na infalível ampulheta do tempo onde lutar contra a passagem das horas observando que caminhamos todos infalivelmente para a morte é mediar quais caminhos e relações estão sendo construídos nesta vida terrena onde o paradoxo da solidão humana é ponto importante a ser observado passando muitas vezes desapercebido por muitos.


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