segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Machado de Assis - Melhores Contos

Melhores Contos - Machado de Assis
Seleção de Domício Proença Filho

Poderia discorrer longo texto sobre a universalidade e atualidade da obra de Machado de Assis que nada estaria acrescentando de novo, do já editado, confirmado, por críticos, literários ou mesmo nobres  tradutores e conhecedores de sua obra, como o Domício Proença Filho, que bem selecionou os Melhores Contos - Machado de Assis.

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Anton Tchékhov - Contos de Tchékhov


Anton Tchékhov, Contos - Volume VI - Tradução (do russo): Nina Guerra e Filipe Guerra, Relógio D´ Água Editores, Outubro de 2006.

"Tais pessoas eram capazes de sonhar, mas incapazes de governar. Destruíam as suas vidas e as dos outros. Eram tolas, fracas, fúteis, histéricas; mas. por trás de tudo isto, ouve-se a voz de Tchékhov: abençoado o país que soube gerar este tipo humano. Eles deixavam escapar as ocasiões, evitavam agir, não dormim à noite inventando mundos que não sabiam construir; mas a própria existência destas pessoas, cheias de uma abnegação apaixonada e fervorosa, de pureza espiritual, de elevação moral, o simples facto de estas pessoas terem vivido e talvez ainda viverem hoje, algures, na implacável e reles Rússia actual é uma promessa de futuro melhor, para todos o mundo, porque, de todas as leis da natureza, a mais maravilhosa é talvez a da sobrevivência dos mais fracos."
(Do Prefácio de Vladimir Nabokov no Vol. I)

Depois deste prefácio fica claro que Tchékhov deixa à mostra a faceta social desprivilegiada, tirando um excelente retrato da exclusão, em tom maravilhosamente claro. Seus personagens são os bêbados, as prostitutas, um fugitivo, uma epidemia, enfim, todos aquelas situações em que a história muitas vezes maqueia essa condição humana e social fica totalmente desnudada. Uma linguagem forte, sem perder a sensibilidade, perpassando todos os detalhes da narrativa através da tensão de seus personagens e suas vivência.

A CORISTA

Um dia, no tempo em que ela tinha mais juventude, beleza e voz, estava na sua casa de campo, na sobreloja, Nikolai Petróvitch Kolpakov, seu admirador. O calor e o ar abafado eram insuportáveis. Kolpakov acabara de almoçar e, como bebera uma garrafa inteira de vinho do Porto horrendo, estava mal-humorado e indisposto. Ambos se aborreciam e esperavam que o calor acalmasse para irem dar um passeio.
De repente tocou a campainha da porta de entrada. Kolpakov, que estava sem sobrecasaca e de pantufas, saltou do lugar e olhou interrogativamente para Pacha.
- Deve ser o carteiro, ou talvez uma amiga - disse a cantora.
Kolpskov não tinha vergonha do carteiro nem das amigas de Pacha, mas, para o que desse e viesse, apanhou toda a sua roupa numa braçada e foi para o quarto contíguo, enquanto Pacha corria a abrir a porta. À entrada, para seu grande espanto, não estava o carteiro nem uma amiga, mas uma desconhecida, jovem, bonita, vestida como uma senhora e, por todos os indícios, das decentes.
A desconhecida estava pálida e respirava com dificuldade, como depois de se subir uma escada alta.
- O que deseja? - perguntou Pacha.
A senhora demorou a responder. Deu um passo em frente, passou um olhar lento pela sala e sentou-se, com o ar de quem já não pode ficar mais tempo de pé por cansaço ou por doença; depois, durante muito tempo, ficou a mexer os lábios exangues, tentando pronunciar qualquer coisa.
- O meu marido está consigo? - conseguiu articular finalmente, levantando para Pacha os seus olhos grandes com as pálpebras inchadas de chorar.
- Que marido? - sussurro Pacha e ficou de súbito tão assustada que sentiu as mãos e os pés a gelarem-lhe. - Que marido? - repetiu, começando a tremer.
- O meu marido... Nikolai Petróvitch Kolpakov.
- Não... não senhora... Eu... eu não conheço marido nenhum.
Um longo momento de silêncio. A desconhecida passou várias vezes o lenço pelos lábios pálidos e, para vencer o tremor, retinha a respiração. Pacha estava em frente dela como petrificada e olhava-a com perplexidade e medo.
- Diz-me então que ele não está cá? - perguntou a senhora com uma voz já firme e sorrindo de forma estranha.
- Eu... não sei de quem está a falar.
- Você é uma  mulher abominável, ignóbil, nojenta... - murmurou a desconhecida, envolvendo Pacha num olhar cheio de ódio e de repugnância. - Sim, sim... é nojenta. Estou satisfeita por poder finalmente dizer-lhe isto na cara!
Pacha sentiu que causava àquela senhora de preto, com os olhos zangados e os dedos finos e brancos, a sensação de qualquer coisa nauseabunda e monstruosa, e sentiu vergonha das suas faces rechonchudas e vermelhas, das marcas de bexigas no nariz e da franja na testa que não havia meio de puxar para cima. E parecia-lhe que se fosse magrinha, sem pó-de-arroz nem franja, poderia esconder que era uma mulher indecente e não teria medo nem vergonha de se ver em frente desta senhora desconhecida e misteriosa.
- Onde está o meu marido? - continuou a senhora. - De resto, tanto me faz que esteja aqui ou não, mas tenho a dizer-lhe, a si, que foi descoberto um desfalque e Nikolai Petróvitch é procurado pela polícia... Querem prendê-lo. Veja bem o que você fez!
A senhora levantou-se e, muito emocionada, pôs-se a passear pela sala. Pacha olhava para ela, e o seu medo era tanto que não percebia.
- Ainda hoje vão encontrá-lo e prendê-lo - soluçou a senhora, e ouvia-se a irritação e o insulto nos seus soluços. - Eu bem sei quem o levou até este horror! Criatura nojenta, repugnante! Abominável, venal! (A senhora franzia o nariz, torcia os lábios de repulsa.) Sinto-me imponente... Oiça você, mulher reles!... Não posso fazer nada, é mais forte do que eu, mas há quem me defenda, a mim e aos meus filhos! Deus vê tudo! Deus é justo! Deus vai castigá-la por cada lágrima minha, por cada noite que passei sem dormir! Há-de chegar a altura em que você se vai lembrar mim!
Caiu de novo o silêncio. A senhora andava pela sala e torcia as mãos, e Pacha olhava para ela com ar lorpa e perplexo, sem compreender, esperando que saísse dali qualquer coisa medonha.
- Minha senhora, eu não sei nada! - disse ela, e desatou a chorar.
- Mentirosa! - gritou a senhora, e os seus olhos brilharam de raiva. - Sei tudo! Há muito que a conheço! Sei que no último mês ele tem estado consigo todos os dias!
- É verdade. E depois? Que importância tem isso? Há muita gente que me visita, mas eu não obrigo ninguém a vir cá. A vontade é deles.
- Acabei de lhe dizer: foi descoberto um desfalque! Ele gastou dinheiro do serviço em proveito próprio! Para uma... como você, para si, ele atreve-se a cometer um crime. Oiça - disse a senhora em voz resoluta, parando em frente de Pacha. - Você pode não ter princípios, já que vive apenas para fazer o mal, é o seu objectivo, mas é impensável que tenha caído tão baixo ao ponto de não ter qualquer vestígio de sentimento humano! Ele tem mulher, filhos... Se for condenado e deportado, eu e os meus filhos morrerremos de fome... Tente compreender! Há uma maneira de o salvar e de nos salvar a nós da miséria e da vergonha. Se eu pagar hoje novecentos rublos, deixam-no em paz. Apenas novecentos rublos!
- Quais novecentos rublos? - perguntou Pacha em voz baixa. - Eu... eu não sei de nada... Não lhe levei...
- Não lhe peço os novecentos rublos... Você não os tem, nem eu quero o seu dinheiro. Peço-lhe outra coisa... Normalmente, os homens oferecem às mulheres da sua condição coisas preciosas. Devolva-me apenas as prendas que o meu marido lhe deu!
- Minha senhora, ele não me ofereceu nada! - guinchou Pacha, começando a compreender.
- Então, onde está o dinheiro? Ele esbanjou o dele, o meu e o alheio... Onde desapareceu tudo isto? Oiç, peço-lhe! Eu estava indignada e disse-lhe muitas coisas desagradáveis, mas peço desculpa. Deve odiar-me, eu sei, mas se tiver compaixão pode pôr-se no meu lugar! Imploro-lhe, devolva-me as jóias!
- Humm... - disse Pacha e encolheu os ombros. - Dava-lhas de boa vontade, mas Deus me fulmine já se ele me deu alguma coisa. Acredite na minha consciencia. Aliás, tem razão - embaraçou-se a conatora -, uma ocasião trouxe-me duas coisinhas. Devolva-lhas, faça o favor...
Pacha tirou de uma das gavetinhas do toucador uma pulseira de ouro oca e um anel barato com rubi.
- Tome! - disse ela, entregando as jóias à visitante.
A senhora corou, tremeu-lhe o rosto. Sentiu-se insultada.
- O que está a dar-me? - disse. - Não lhe peço uma esmola mas aquilo que não lhe pertence... aquilo que você, fazendo uso de sua condição, extorquiu ao meu marido... esse homem fraco, desgraçado... Na quinta-feira, quando a v i com o meu marido no cais, você tinha broches e pulseiras caros. Por isso não vale a pena fingir-se um cordeiro inocente! Pergunto pela última vez: devolve-me as jóias ou não?
- Que mulher estranha é a senhora, credo... - disse Pacha, começando a ofender-se. - Da parte do seu Nilolai Petróvitch, juro-lhe que só vi estas pendas, uma pulseira e um anel. Só me trazia pastéis doces.
- Pastéis doces... - sorriu-se a desconhecida. - Em casa, as crianças não têm nada para comer, mas para aqui vêm pastéis doces. Recusa-se então, definitivamente, a devolver-me as jóias?
A senhora, não recebendo resposta, sentou-se e, com ar pensativo, fixou os olhos num ponto vago.
- O que faço agora? - disse. - Se não arranjar novecentos rublos, é o fim dele e também o meu e dos filhos. Mato esta velhaca ou ponho-me de joelhos diante dela?
A senhora apertou o lenço à cara e desatou a chorar.
- Peço-lhe! - disse por entre os soluços. - Você arruinou o meu marido, levou-o à perdição, agora salve-o... Não é compaixão por ele, mas pelos filhos... os filhos...Que culpa têm os filhos?
Pacha imaginou umas crianças pequenas, na rua, a chorarem de fome, e começou também a chorar.
- O que posso fazer, minha senhora? - disse ela. - A senhora diz que sou velhaca e arruinei Nikolai Petróvitch, mas eu juro-lhe perante Deus que não tirei proveito nenhum dele... No nosso coro, só a Mótia tem um protector rico, mas nós, as outras todas, vivemos de mal a pior. Nikolai Petróvitch é um senhor culto e delicado, por isso é que o recebo. Não podemos deixar de receber...
- Peço-lhe as jóias! As jóias Estou aqui a chorar... a humilhar-me... Está bem, ponho-me de joelhos! Está bem!
Pacha soltou um grito de susto e abanou as mãos. Sentia que a senhora pálida e bonita que se exprimia com tanta nobreza, como no teatro, era realmente capaz de se ajoelhar diante dela, precisamente por orgulho, por nobreza, para se engrandecer e para humilhar a corista.
- Está bem, eu dou-lhe as jóias! - decidiu Pacha, limpando os olhos. - Mas olhe que não são de Nikolai Petróvitch... Recebi-as de outros convidados. Mas como queira...
Pacha abriu a gaveta superior da cómoda, tirou de lá um broche com diamantes, um fio de corais, vários anéis, uma pulseira e deu tudo à senhora.
- Já que as quer, tome, mas não tirei proveito enhum do seu marido. Tome, enriqueça! - continuou Pacha, sentindo-se insultada com a ameaça de ela se pôr de joelhos. - Mas se é nobre... esposa legítima dele, deveria mantê-lo ao pé de si. É isso! Eu não o convidava, ele vinha cá porque queria...
A senhora, por entre as lágrimas, examinou as jóias e disse:
- Não chega... Isto nem quinhentos rublos faz.
Pacha, impulsivamente, atirou-lhe da cómoda ainda um relógio de ouro, uma tabaqueira e botões de punho, e disse, abrindo os braços:
- Não tenho mais nada... Nem que me reviste!
A visitante suspirou, embrulhou tudo num lenço, com as mãos a tremer, e, sem dizer palavra, sem acenar sequer com a cabeça, saiu.
Abriu-se logo a porta do quarto do fundo e entrou Kolpakov. Estava pálido e sacudia nervosamente a cabeça, como se acabasse de tomar qualquer coisa muito amarga; brilhavam-lhe as lágrimas nos olhos.
- Que coisas o senhor me trazia? - investiu logo Pacha. - Quando, se me permite a pergunta?
- Coisas... O que interessam as coisas? - disse Kolpakov e sacudiu a cabeça. - meu Deus! Ela a chorar, a humilhar-se diante de ti...
- Pergunto-lhe: que coisas me trouxe? - gritou Pacha.
- Meu Deus, ela, tão decente, orgulhosa, pura... a querer pôr-se de joelhos à frente... à frente desta... rameira! Ao ponto a eu eu a levei! Fui eu!
Deitou as mãos à cabeça e gemeu:
- Não, nunca hei-de perdoar-me! Nunca! Afasta-te de mim... porca! - gritou com repugnãncia, recuando e repelindo Pacha com as mãos a tremerem. - Ela já queria ajoelhar-se e... diante de quem? Diante de ri! Oh, meu Deus!
Vestiu-se rapidamente e, contornando Pacha com nojo, dirigiu-se para a porta e saiu.
Pacha deitou-se e desatou num alto choro. Já tinha pena das suas coisas que entregara num impulso, estava ressentida. Lembrou-se de que, três anos atrás, um comerciante a espancou sem razão e ela chorou ainda mais alto.


Anton Tchékhov
1860 - Em 17 de janeiro nasce Anton Pavlovitch Tchekhov, em Tanganrog, na Rússia, filho de Pavel Yegorovich Tchekhov e Yevgenia Morozov.
1875 - O pai de Tchekhov foge da cidade e abandona a família quando sua mercearia vai à falência.
1879 - Tchekhov ingressa na faculdade de Medicina, na Universidade  de Moscou.
1882 - Torna-se colaborador de um periódico humorístico de São Petersburgo, escrevendo contos e vinhetas.
1884 - Começa a praticar a medicina. Apresenta os primeiros sintomas de tuberculose.
1887 - Alcança sucesso literário em São Petersbugo com sua primeira peça, Ivanov.
1890 - Viaja pela Sibéria para entrevistar prisioneiros e exilados.
1895 - Escreve A Gaivota.
1896 - A Gaivota estréia no teatro e é cancelada após a quinta apresentação.
1897 - O estado de saúde de Anton se agrava.
1998 - A Gaivota é produzida com sucesso pelo Teatro de Arte de Moscou.
1899 - Tio Vânia é encenada com sucesso no Teatro de Arte de Moscou.
1901 - Estréia As Três Irmãs, obra considerada sua maior criação. Anton se casa com Olga Knipper.
1904 - É produzida a última peça de Tchekhov, O jardim das Cerejeiras.
Em 2 de julho Anton morre de tuberculose, na Alemanha.


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