sábado, 8 de abril de 2017

Italo Calvino - Fábulas Italianas


Italo Calvino - Fábulas Italianas

Calvino, Italo - Fábulas italianas: coletadas na tradição popular durante os últimos cem anos e transcritas a partir de diferentes dialetos - Italo Calvino; tradução Nilson Moulin. - São Paulo : Companhia das Letras, 2006.

Trabalho fenomenal de Italo Calvino, que teve como impulso inicial o desafio para produção do livro pela necessidade que surgiu de uma exigência editorial: pretendia-se, ao lado dos grandes livros de contos populares estrangeiros, uma antologia italiana. Mas que texto escolher? Existiria um "Grimm italiano"? se pergunta o autor, na introdução do livro.

O autor ao terminar o complexo trabalho, mas antes tem a real visão de que é "um salto no escuro, como pular de um trampolim e mergulhar num mar em que há um século e meio só se atreve a entrar quem é atraído não pelo prazer esportivo de nadar em ondas insólitas, mas por um apelo do sangue, como para salvar algo que se agita lá no fundo e que, caso contrário, se perderia sem voltar à tona".

Longa introdução o autor resenha todo o trabalho para conseguir catalogar e priorizar toda a narrativa encontrada desta arte popular visando resgatar, retratar a história escrita e contada do povo italiano.

"São, tomadas em conjunto, em sua sempre repetida e variada casuística de vivências humanas, uma explicação geral da vida nascida em tempos remotos e alimentada pela lenta ruminação das consciências camponesas até nossos dias; são o catálogo do destino que pode caber a um homem e a uma mulher, sobretudo pela parte de vida que juntamente é o perfazer-se de um destino: a juventude, do nascimento que tantas vezes carrega consigo um auspício ou uma condenação, ao afastamento da casa, às provas para tornar-se adulto e depois maduro, para confirmar-se como ser humano. E, neste sumário desenho, tudo: a drástica divisão dos vivos em em reis e pobres, mas sua paridade substancial; a perseguição do inocente e seu resgate como termos de uma dialética interna a cada vida; o amor encontrado antes de ser conhecido e logo depois sofrimento enquanto bem perdido; a sorte comum de sofrer encantamentos, isto é, ser determinado por forças complexas e desconhecidas, e o esforço para libertar-se e autodeterminar-se como um dever elementar, junto ao de libertar-se libertando; a fidelidade a uma promessa e a pureza de coração como virtudes basilares que conduzem à salvação e ao triunfo; a beleza como sinal de graça, mas que pode estar oculta sob aparências de humilde feiura como um corpo de rã; e sobretudo a substância unitária do todo: homens animais plantas coisas, a infinita possibilidade de metamorfose do que existe."

Explica ainda que o trabalho de natureza híbrida é também "científico" pela metade ou, em três quartos, sendo a quarta parte fruto de arbítrio individual.

Surpreendente é sua conclusão após o minucioso trabalho de que "as fábulas são verdadeiras."

Quem é capaz de duvidar?

São elas:
Joãozinho Sem Medo;
Corpo Sem Alma;
O Pastor que não crescia nunca;
Nariz de Prata;
A barba do conde;
A menina vendida com as peras;
O príncipe canário;
Os Biellenses, gente dura;
A linguagem dos animais;
As três casinhas;
A terra que não se morre nunca;
As três velhas;
O príncipe-Caranguejo;
O menino no saco;
A camisa do homem feliz;
Uma noite no paraíso;
Jesus e são Pedro no Friul;
O anel mágico;
O braço de morto;
A ciência da preguiça;
Bela Testa;
Luna;
O corcunda Sapatim;
O Ogro com penas;
Belinda e o Monstro;
A rainha Marmota;
O filho do mercador de Milão;
O palácio dos macacos;
O palácio encantado;
Cabeça de búfula;
A filha do sol;
O florentino;
O presente do vento do norte;
A moça-maça;
Salsinha;
O Pássaro Bem Verde;
Grãozinho e o boi;
A água na cestinha;
Catorze;
João Bem Forte que a quinhentos deu a morte;
Galo-cristal;
O soldado napolitano;
Belmel e Belsol;
Chico Pedroso;
O amor das três romãs;
José Peralta que, quando não arava, tocava flauta;
Corcunda, manca e de pescoço torto;
A falsa avó;
O ofício de Francisquinho;
Crie, Croc e Mão de Gancho;
A primeira espada e a última vassoura;
Os cinco desembestados;
Eiro-eiro, burro meu, faça dinheiro;
Leombruno;
Os três órfãos;
O reizinho feito à mão;
O rei-serpente;
Cola-peixe;
Grátula-Bedátula;
Desventura;
A cobra Pepina;
Dono de grãos-de-bico e favas;
O sultão com sarna;
Alecrina;
Diabocoxo;
A moça-pomba;
Jesus e são Pedro na Sicília;
O relógio do barbeiro;
A irmão do conde;
O casamento de uma rainha com um bandido;
Pelo mundo afora;
Um navio carregado de...;
O filho do rei no galinheiro;
A linguagem dos animais e a mulher curiosa;
O bezerrinho com chifres de ouro;
A velha da horta;
A rainhazinha com chifres;
Yufá;
O homem que roubou os bandidos;
Santo Antônio dá o fogo aos homens;
Março e o pastor;
Pule no saco!

JOÃOZINHO SEM MEDO

"Era uma vez um menino chamado Joãozinho Sem Medo, pois não tinha medo de nada. Andava pelo mundo e foi parar em uma hospedaria, onde pediu abrigo.
- Aqui não tem lugar - disse o dono -, mas, se você não tem medo posso mandá-lo para um palácio.
- Por que eu sentiria medo?
- Porque ali a gente sente e ninguém saiu de lá a não ser morto. De manhã, a Companhia leva o caixão para carregar quem teve a coragem de passar a noite lá.
Imaginem Joãozinho! Levou um candeeiro, uma garrafa, uma linguiça, e lá se foi.
À meia-noite, comia sentado à mesa quando ouviu uma voz saindo da chaminé:
-Jogo?
E Joãozinho respondeu:
- Jogue logo!
Da chaminé desceu uma perna de homem. Joãozinho bebeu um copo de vinho.
Depois a voz tornou a perguntar:
- Jogo?
E Joãozinho:
- Jogue logo!
E desceu outra perna de homem. Joãozinho mordeu a linguiça.
- Jogo?
- Jogue logo!
E desceu um braço. Joãozinho começou a assoviar.
- Jogo?
- Jogue logo!
Outro braço.
- Jogo?
- Jogue!
E caiu um corpo que se colou nas pernas e nos braços, ficando de pé um homem sem cabeça.
- Jogo?
- Jogue!
Caiu a cabeça e pulou em cima do corpo. Era um  homenzarrão gigantesco e Joãozinho levantou o copo dizendo:
- À saúde!
O homenzarrão disse:
- Pegue o candeeiro e venha.
Joãozinho pegou o candeeiro mas não se mexeu.
- Passe na frente! - disse Joãozinho.
- Você! disse o homem.
- Você! disse Joãozinho.
Então o homem se adiantou e de sala em sala atravessou o palácio, com Joãozinho atrás, iluminando. Debaixo de uma escadaria havia uma portinhola.
- Abra! Disse o homem a Joãozinho.
- Você! - disse Joãozinho.
Então o homem se adiantou e de sala em sala atravessou o palácio, com Joãozinho atrás, iluminando. Debaixo de uma escadaria havia uma portinhola.
- Abra! - disse o homem a Joãozinho.
E Joãozinho:
- Abra você!
E o homem abriu com um empurrão. Havia uma escada em caracol.
- Desça - disse o homem.
- Primeiro você - disse Joãozinho.
Desceram a um subterrâneo, e o homem indicou uma laje no chão.
- Levante!
- Levante você! - disse Joãozinho, e o homem a ergueu como se fosse  uma pedrinha.
Embaixo havia três tijelas cheias de moedas de ouro.
- Leve para cima! - disse o homem.
- Leve para cima você! - disse Joãozinho. E o homem levou uma de cada vez para cima.
Quando foram de novo para a sala da chaminé, o homem disse:
- Joãozinho, quebrou-se o encanto! - Arrancou-se uma perna, que saiu esperneando pela chaminé. - Destas tigelas uma é sua. - Arrancou-se um braço, que trepou pela chaminé.
- Outra é para a Companhia que virá buscá-lo pensando que você está morto. - Arrancou-se também o outro braço, que acompanhou o primeiro. - A terceira é para o primeiro pobre que passar. - Arrancou-se outra perna e ele ficou sentado no chão. - Pode ficar com o palácio também. - Arrancou-se o corpo e ficou só a cabeça no chão. - Porque se perdeu para sempre a estirpe dos proprietários deste palácio, - E a cabeça se ergueu e subiu pelo buraco da chaminé.
Assim que o céu clareou, ouviu-se um canto: Miserere mei, miserere mei, e era a Companhia com o caixão que vinha recolher Joãozinho morto. E o veem na janela, fumando cachimbo.
Joãozinho Sem Medo ficou rico com aquelas moedas de ouro e morou feliz no palácio. Até um dia aconteceu que, virando-se, viu sua sombra e levou um susto tão grande que morreu.

Italo Calvino (1923-85) nasceu em Santiago de Las Vegas, Cuba, e foi para a Itália logo após o nascimento. Participou da resistência ao fascismo durante a guerra e foi membro do Partido Comunista até 1956. Publicou sua primeira obra, A trilha dos ninhos de aranha, em 1947.

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